Em meio à crise sanitária provocada pela pandemia de COVID-19, o presidente da Câmara, Arthur Lira, tenta criar uma brecha para a iniciativa privada no processo de vacinação, colocando em risco a eficácia da imunização e favorecendo a especulação, em detrimento de um programa nacional coordenado pelo SUS.
O presidente da Câmara, Arthur Lira, apresentou uma proposta polêmica que visa autorizar a compra e a aplicação de vacinas contra a COVID-19 sem repasse para o Sistema Único de Saúde (SUS), sem a definição de prioridades, e com isenção de impostos. A medida, que cria um programa paralelo de vacinação utilizando recursos públicos, visa atender à demanda privada, mas levanta sérias questões sobre a eficácia e a equidade da vacinação no Brasil. Independentemente de a lei ser aprovada ou não, a manobra reflete uma tentativa de favorecer setores privados e políticos, sem o devido compromisso com o sistema público de saúde e a população.
Lira justificou sua proposta afirmando que a iniciativa privada poderia trazer vacinas para o país com maior agilidade, inclusive alegando que qualquer brasileiro vacinado seria um a menos nas estatísticas de risco. No entanto, essa simplificação ignora uma série de fatores que poderiam comprometer ainda mais o plano nacional de vacinação. O Brasil enfrenta uma escassez de vacinas, com as grandes fabricantes limitando a produção e distribuição de doses apenas aos governos, que possuem a capacidade e a responsabilidade de organizar a imunização de toda a população.
Se empresas privadas entrarem nesse jogo, a tendência será uma disputa pelos preços das vacinas, o que pode elevar os custos e prejudicar a negociação entre o governo e os fabricantes. Além disso, as empresas poderiam romper contratos com países para vender vacinas a preços mais altos, prejudicando ainda mais o acesso público. Em um cenário de escassez, cada dose comprada pela iniciativa privada seria uma a menos destinada ao SUS, comprometendo o objetivo de imunização universal e eficiente.
A compra de vacinas pelo setor privado também levanta questões sobre a fiscalização e a garantia de qualidade. A rede pública de saúde é a única capaz de garantir que as vacinas sejam administradas de forma adequada, de acordo com os protocolos científicos e médicos estabelecidos. O risco de fraudes, erros no manuseio e efeitos adversos é elevado em um sistema paralelo, e qualquer problema relacionado à vacinação privada pode afetar a saúde pública, recaindo sobre o SUS e aumentando a carga sobre o sistema de saúde.
Além disso, a proposta de Lira pode resultar em uma situação em que pessoas mais jovens e saudáveis, com maior poder aquisitivo, se vacinem antes de idosos e grupos de risco, o que configura uma grave injustiça e uma afronta aos profissionais de saúde que lutam na linha de frente contra o vírus. A quebra da solidariedade e a priorização dos mais ricos em detrimento dos mais vulneráveis apenas intensificaria a desigualdade social já tão presente no Brasil.
A pressa de Lira em implementar essa medida pode ser explicada pelo cenário de fracasso no Plano Nacional de Vacinação, que está aquém das expectativas. O governo federal, por meio de seu Ministério da Saúde, reduziu suas previsões de entrega de vacinas, com a expectativa de 25 milhões de doses em abril, contra os 47,3 milhões prometidos inicialmente. A diferença de 22 milhões de doses reflete a falta de planejamento e a falha na execução do programa, que já comprometeu a entrega de vacinas em março.
Esse quadro de previsões não cumpridas e promessas não realizadas aponta para um possível jogo político de aparências, em que números fictícios são apresentados para tentar conter a pressão das autoridades estaduais e da população. Lira, em vez de usar sua posição no Congresso para fortalecer o SUS e garantir que as vacinas cheguem à população de forma eficaz, age em benefício de seus aliados e financiadores, priorizando o setor privado em detrimento da saúde pública.
O Brasil segue enfrentando uma pandemia descontrolada, com uma média móvel de óbitos de 3.119 e um número crescente de casos ativos, acima de 1,2 milhão. A vacinação precisa ser coordenada, com um esforço coletivo para garantir que todos os brasileiros, sem exceção, sejam vacinados de forma justa e segura. A ação de Lira é um desvio perigoso, que pode prejudicar a luta contra a pandemia e ampliar a desigualdade no acesso à saúde. A prioridade deve ser a proteção da vida e da saúde pública, não a vantagem de poucos em um cenário de escassez.