Tenha coerência

Nos momentos de polarização política, o maior ato de heroísmo é manter a razão. Isso porque a razão exige duas coisas que a animosidade faz questão de passar por cima.

A primeira delas é a capacidade de parar para pensar. Enquanto nas atividades políticas a ação determina o sujeito, nas atividades do pensamento o sujeito precisa se retrair.

Enquanto nas atividades políticas o sujeito transforma o mundo, nas atividades do pensamento o sujeito escapa do mundo e estabelece um diálogo interior. É um princípio elementar, desde Platão até a noção de “teoria prática” de Marx, que pensamento e ação não são capazes de coexistirem no mesmo espaço e tempo: quando um entra, o outro sai.

Tanto que, para “agirmos pensando”, temos que dar um passo de cada vez, hesitando tanto em agir de mais e pensar de menos quanto agir de menos e pensar de mais: eis o paradoxo clássico entre filosofia e política.

Nas situações normais, em que a política dá passos consideravelmente lentos, podemos tranquilamente dedicar nosso tempo para refletir até chegar o momento certo de agir cirurgicamente. Mas nas situações excepcionais, em que os ânimos em ebulição exigem que as coisas se acelerem, somos obrigados a pensar um pouco menos. A urgência sempre nos empurra contra nossas hesitações.

O efeito disso são os discursos das multidões se tornando um só. O pensamento basicamente se tornou uma cartilha, com um código acima das pessoas, e nada de novo pode ser dito porque ninguém tem tempo de refletir a respeito. Toda novidade acaba parecendo mera dissidência.

O segundo aspecto da razão que é atropelado pelos ânimos exaltados é o próprio espaço das ações políticas, que deveria ser marcado pela pluralidade de sujeitos. É no ato do pensamento, da introspecção, que o sujeito se torna indivíduo e realiza a si mesmo.

A pluralidade própria da política somente existe quando os sujeitos ali presentes são pensantes, pois somente assim demarcam sua multiplicidade. Porém, no contexto de tudo ou nada, qualquer “meio termo” se torna um lugar vazio.

Os sujeitos precisam se unir num-sujeito-só para serem alguma coisa e, por isso, são sugados pelas forças centrípetas dos dois pólos políticos em vigência. O problema disso hoje em dia é que os sujeitos historicamente marginalizados voltam a ser invisibilizados momentaneamente, pois as pautas individuais perdem espaço para a necessidade geral.

A partir disso, acaba sendo constrangedor que, pessoas transgênero, por exemplo, que têm motivos sérios para não se sentirem representadas pelo governo do PT, sejam obrigadas a defender a democracia com o mesmo ímpeto que os apoiadores do governo, pois caso contrário seriam pelegas ou golpistas.

A questão definitivamente não é o apego ou não à democracia, mas o próprio significado que essa pauta adquire para esses sujeitos, que tem outras urgências antes da “legitimidade do voto” e que voltam a ter suas demandas secundarizadas. Isso tem se repetido, ao meu ver, mais ou menos com praticamente todos os grupos indenitários.

Estou expondo aqui um problema sem solução e que, por justamente vir neste contexto, pode ser percebido como dissidente, mas ainda assim considero importante expor.

É por estarmos condicionados a uma situação de urgência, no meio da qual pensar se torna um ato de heroísmo, que os diferentes sujeitos-lugar ficaram em segundo plano em relação à pauta geral. E esse contexto político tem sido insuportável para muitos grupos cujas necessidades imediatas são ainda mais urgentes.

Acaba sendo um desejo das classes dominantes que suspendamos as lutas sobre os problemas mais imediatos das nossas vidas para nos concentremos nas pautas bombas.

Temos de ter ciência disso porque, se não pode ter golpe, pode menos ainda ter silenciamento.

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