(Não tem spoiler, só conceitos)
1) Muitas vezes, para o tratamento de determinadas questões filosóficas, os autores recorriam a fontes narrativas que compunham o imaginário compartilhado. Não somente os clássicos greco-romanos compunham a fonte comum de problemas depositada no imaginário, mas também a Bíblia. Parece que a Bíblia restou como uma das poucas fontes narrativas compartilhadas e depositadas no amplo imaginário.
2) As mídias sociais e a grande mídia explodem, corroem e desarticulam narrativas: pela sua velocidade e poder de fragmentação. Elas não permitem um repositório de imagens exemplares e sedimentadas pela repetição. E, com a fuga da exemplaridade, acoplada ao sensacionalismo, joga-se no reino da suposta trivialidade uma série de problemas fundamentais, problemas filosóficos capitais que cotidianamente colocamos:
2) o que é a justiça?;
3) sou plenamente livre para agir?;
4) em que está fundamentada e justificada a possibilidade da liberdade?;
5) o que desejamos dizer e o que podemos esperar diante da pergunta sobre a existência de um sentido para o mundo?;
6) quais são os meios para a interpretação de uma mensagem?;
7) como interpretar uma mensagem sem que o excesso das minhas expectativas deturpe o meu julgamento?;
8) o que está por detrás da nossa impressão de não reconhecer a justiça humana como uma correta justiça, ou seja, por qual razão não nos reconhecemos em nossas instituições?
3) Um caso clássico, como o de Judas, tratado continuamente, recebe uma formulação exemplar de Leibniz: sendo Deus omnisciente e livre para criar, estaria Judas pré-determinado a trair Cristo? Se estivesse pré-determinado, então Deus haveria criado um ser maligno, sendo então causa do mal. Se não houvesse criado, então o plano da salvação, pela morte de Cristo, dependeria de fatores contingentes, sendo o seu sacrifício igualmente contingente.
4) A Coréia do Sul tem passado por um crescimento no número de evangélicos (muitos do estilo neopentecostal americano). Espetáculos, acusações, promessas de ser escolhido, prosperidade financeira, escândalos de lavagem de dinheiro, tudo o que já conhecemos por aqui. Uma indicação dada pelo autor da série é a menção a Sodo, um elemento da tradição religiosa popular coreana, uma ilha dedicada às práticas rituais. Assim sendo, não é que o divino seja negado, mas há uma contestação da interpretação oferecida pela caricatura evangélica, em favor das bases rituais dos antepassados.
Profecia Cotidiana: a mensagem por trás do seriado “Profecia do Inferno” – NetFlix
Por trás do drama, a série sul-coreana traduzida para o português com o forte título de “Profecia do Inferno” (em coreano: 지옥; em inglês: Hellbound), dirigida por Yeon Sang-ho, trata de temas importantes em nosso cotidiano, como o poder das redes sociais, o extremismo político, o fanatismo religioso e a crença em uma justiça perfeita.
Desafiando a ideia de que somente no Brasil se lidaria com questionamentos quanto à suposta insuficiência das Leis e da Justiça, a trama traz uma concepção de que a impunidade na Coreia do Sul seria o principal fator para a crescente prática de ilícitos (ou para a reiteração deles), ali traduzida na ideia original de pecado como ato contrário ao que seria justo ou legal.
Baseado nesta premissa, o enredo da série parte de uma insuficiência dos meios estruturais, com destaque para uma escassez da atuação da Polícia e da Justiça em manter a paz e ordem públicas, cuja solução somente seria possível pela imposição da justiça divina exercida ainda durante a vida, atirando ao Inferno, com mortes brutais executadas “ao vivo” por enviados das trevas, aqueles que seriam taxados como pecadores.
Os “pecados”, no entanto, são desconhecidos da sociedade, já que não passam pelo sistema de julgamento humano, e sequer são confessos ou dignos de perdão. A rotulação parte de especulações que formam o estereótipo dos pecadores, quase sempre de maneira açodada e preconceituosa, e geralmente se dá pelo simples clamor popular. A confluência com o “Tratado sobre a Tolerância”, de Voltaire, e com o “Homem Deliquente”, de Lombroso, parecem ensurdecedoramente eloquentes.
Em uma cenário dinâmico, a série traz a corrida de diversos protagonistas obstinados a esclarecer a forma como estas mortes ocorrem, o que fatalmente passa pelas dificuldades provocadas por linchamentos e ataques à reputações incitados pelas redes sociais e por bolhas formadas por extremismos políticos, muitas vezes ligados ao fanatismo religioso, onde a opinião contrária não é tolerada.
Com efeito, a crença em uma justiça que seja perfeita ainda durante a vida provoca anomalias no tecido social, obrigando ao enclausuramento pelo pânico e/ou a resolução dos conflitos sociais pelas mãos de verdadeiros justiceiros, muitas vezes adolescentes rebeldes (com o perdão do trocadilho), a retratar uma mistura de inocência com ignorância quanto ao fundamento e ao funcionamento das instituições.
Cada capítulo tem seu destaque particular, mas fica claro em todos eles a finalidade de, em substituição aos meios ordinários, impor-se um sistema de justiça totalitário, no qual a vontade de alguns prevaleça sobre a da maioria, por meio de técnicas bem exploradas em outras épocas da história: o medo, a desconfiança no outro e a vinda de falsos profetas que seriam donos de uma verdade única e dogmática! A ideia de “Retrotopia” de Bauman parece clara aqui.
A “Nova Verdade”, instituição que passa a ser responsável por transmitir a palavra de Deus, prega a punição como forma de propalar a obediência e se vale de outras instituições ainda mais extremistas para “converter” os incrédulos por meio da violência física, moral e psicológica. Deixa-se claro o uso do sobrenatural como forma de justificar o terror e, ao mesmo tempo, como meio para se esconder a corrupção dentro de sua própria estrutura.
Para além disso, revela bastidores de muitas associações que se autodenominam religiosas, mas que, em essência, não passam de organizações charlatanistas, voltadas a interesses financeiros mesquinhos.
Tudo isso se passa em 2022, a anunciar que a realidade profetizada, que já parece parte de nosso presente, pode ficar ainda mais dura em um futuro próximo.
De fato, em um mundo de pós-verdades e fake news, parece se caminhar no sentido contrário de tudo aquilo que nos conduziu até aqui, havendo cada vez mais discursos que propositadamente mesclam a realidade com todo tipo de crendice, com objetivo único de dominar, explorar e dividir a humanidade.
Na “Profecia do Inferno”, o sobrenatural cuida dos maus, enquanto o que é bom é retratado somente em uma instituição humana, única ali vinculada ao céu. Inversão de valores que bem traduz comportamentos que hoje tentam justificar condutas que ocorrem em oposição à Lei e a princípios, muitas vezes por interesses próprios.
A toda evidência, a liberdade não está na cega obediência pregada por salvadores mitológicos, em uma sociedade utópica, mas, sim, em enfrentar nossos problemas reais a serem resolvidos por meio da democracia, das leis, das instituições legalmente criadas/organizadas e do sentimento de pertencimento próprio do viver em comunidade.
Se é verdade que esse sistema democrático é muitas vezes marcado por traços de violência, corrupção e/ou desigualdade, também o é que cabe a este mesmo sistema aperfeiçoar seus elos, métodos e mecanismos para solucionar seus defeitos, e não se voltar a modelos que, fracassados no passado, só serviram para dividir a humanidade, privando a liberdade e os direitos fundamentais de alguns às custas de um poder totalitário, desigual e voltado basicamente à proteção da elite “vip”, que geralmente assiste passivamente a tudo da primeira fila.
Aguardemos os próximos episódios, pois até agora isso tudo se deu em apenas 06 capítulos!