No campo da saúde e das dinâmicas familiares, é crucial questionar o que realmente constitui uma família. A experiência de crianças em situações de abandono e negligência revela como a falta de afeto pode afetar profundamente o desenvolvimento emocional e psicológico, fazendo com que a ideia de família seja, muitas vezes, limitada pelas normas sociais.
Na minha breve experiência, tive o privilégio de observar dezenas de casos de crianças abandonadas em hospitais, situações que são um reflexo direto de lares marcados pela falta de carinho e atenção. Em muitos desses casos, as crianças cresciam em ambientes de violência explícita ou com a instabilidade emocional dos pais, como aqueles com dependência psicológica ou química de substâncias, ou mesmo envolvimento com o crime organizado. O resultado desse abandono precoce não poderia ser mais claro: problemas no desenvolvimento, em que “hiperatividade” e “transtorno de déficit de atenção” se tornam a regra.
Esses comportamentos não são nada mais do que uma resposta natural a um mundo sem apoio, onde as crianças precisam, de forma forçada, aprender a lidar sozinhas com a realidade. A ausência de autoridade, frequentemente associada ao desamparo, é um dos maiores fatores para a criação dessa lacuna no desenvolvimento infantil. Porém, o ciclo vicioso de rejeição é ainda mais cruel: a criança é vista apenas por seus problemas de comportamento, quando, na verdade, esses problemas são um reflexo da dor e da solidão.
A história de um casal homossexual que decide romper esse ciclo de abandono, oferecendo amor, carinho, estabilidade e atenção, me parece o exemplo perfeito de como a cura é possível. O que esse casal oferece é, de fato, o que falta na vida de muitas crianças: a oportunidade de experimentar o afeto de uma verdadeira família. Essa experiência deve ser vista como um testemunho de que a verdadeira definição de “família” vai muito além de normas ou expectativas heteronormativas.
Para entender melhor essa ideia, é útil refletir sobre o pensamento de Hegel, um dos maiores filósofos da história. Hegel, ao tratar da filosofia do Estado, afirma que “a família é antes ‘uma pessoa’. Seus membros são aqueles que abdicaram de seus interesses particulares. A unidade da família é o amor recíproco que, ao se exteriorizar, recupera a si mesmo.” (Filosofia da História, p. 42, Editora UnB). Para Hegel, a verdadeira unidade familiar não se baseia apenas na estrutura formal, mas no compromisso de seus membros em colocar o bem-estar coletivo acima de seus próprios interesses.
A pergunta que surge diante dessa reflexão é: como pode esse amor, esse compromisso profundo de um casal homossexual, onde os membros se abdicam de si mesmos para oferecer ao outro e a uma criança o melhor de suas emoções e capacidades, não ser considerado uma verdadeira família? Para o Estado, o amor, o afeto e a construção de uma história em comum não são elementos suficientes para definir o que é uma família? A resposta, infelizmente, ainda depende de normas sociais que ignoram a realidade de tantas famílias formadas por vínculos afetivos genuínos, independentemente de sua estrutura formal.
O amor, a dedicação e a troca que definem uma família não estão presos a uma ideologia ou a um modelo tradicional. Eles existem em todos os lugares onde há cuidado, respeito e união. E é a partir desse amor que as famílias se tornam capazes de oferecer a estabilidade e a cura que qualquer criança precisa para prosperar.