O uso da cloroquina como uma panaceia contra a COVID-19 tornou-se um símbolo de um negacionismo insustentável e de uma disputa ideológica e simbólica em torno da saúde pública. Desde os primeiros estudos de 2020, a droga foi promovida sem respaldo científico, gerando controvérsias e disseminação de informações equivocadas, e resultando, ainda, em altos custos financeiros.
Desde o início da pandemia, a cloroquina emergiu como um dos principais símbolos da resistência bolsonarista à ciência e à recomendação de especialistas. Embora inicialmente tenha sido anunciada com base em estudos iniciais da China e da França que sugeriam uma ação “promissora” da hidroxicloroquina contra o SARS-CoV-2, esses resultados não passaram de testes preliminares e in vitro, que, em ciência, representam apenas o primeiro passo de uma longa jornada de validação. No entanto, para o discurso político, esses resultados foram utilizados para reforçar uma narrativa de que a solução estava ao alcance, ignorando os passos necessários para comprovar sua eficácia em ensaios clínicos.
A palavra “in vitro” descreve experimentos feitos em culturas celulares, um procedimento comum na pesquisa científica, mas que não garante que os resultados se apliquem a seres humanos. Mesmo assim, o entusiasmo inicial fez com que políticos e parte da classe médica, com o apoio de uma ala governamental comprometida com a narrativa, desconsiderassem as advertências de que a cloroquina precisava ser testada em ensaios controlados com placebo. O que se seguiu foi uma insistência em um “tratamento precoce” amplamente desaconselhado pela comunidade científica.
Estudos clínicos realizados ao longo dos meses seguintes indicaram inequivocamente que a cloroquina não era eficaz no tratamento da COVID-19 e que seu uso poderia ser prejudicial, com efeitos colaterais graves. A Organização Mundial da Saúde (OMS), que jamais recomendou o medicamento, passou a desaconselhar seu uso a partir de julho de 2020. Entretanto, o Ministério da Saúde, em resposta às pressões políticas, manteve a recomendação de uso da cloroquina, causando confusão e perpetuando um ciclo de desinformação. Esse cenário foi agravado pela recomendação de procedimentos perigosos, como a nebulização com cloroquina, que envolvia a ingestão de substâncias prejudiciais como farinha e talco industrial.
O uso inadequado do medicamento, muitas vezes sem o devido consentimento informado, expôs a fragilidade do sistema de saúde pública e a irresponsabilidade de certos médicos, que, alinhados ideologicamente com o governo, se dispuseram a prescrever o medicamento de forma indiscriminada, colocando vidas em risco. No caso da nebulização, tratava-se de um experimento não aprovado por comissões de ética, o que caracteriza uma violação grave das normas de pesquisa médica.
O comportamento do governo federal, ao insistir na distribuição da cloroquina em larga escala, também teve um forte componente ideológico e simbólico. O presidente Jair Bolsonaro, desde o início da pandemia, se posicionou firmemente a favor do uso do medicamento, chegando a ordenar sua produção pelo Exército. Essa posição foi compartilhada por setores da classe médica, alinhados com a agenda do governo, que, contrariando o consenso científico, viabilizaram um processo de prescrição desenfreada.
Além do impacto na saúde pública, a insistência no uso da cloroquina e de outras medicações sem comprovação científica teve um efeito psicológico importante: a criação de um falso senso de segurança e a ilusão de que o medicamento poderia ser a chave para a superação da pandemia. A combinação de uso inadequado com a ausência de medidas de prevenção, como o distanciamento social e o uso de máscaras, fez com que milhões de brasileiros se tornassem defensores da cloroquina, baseando suas crenças em experiências pessoais distorcidas.
Por trás de toda essa movimentação, também existem interesses financeiros que merecem ser investigados. A fabricação em larga escala de cloroquina e outros medicamentos, como a ivermectina, resultou em um mercado lucrativo, que envolve grandes recursos financeiros. Como em muitos outros casos de crise, o dinheiro segue seus próprios interesses, e aqueles que se beneficiaram dessa situação certamente contribuíram para a propagação do negacionismo e da desinformação.
Hoje, com mais de 423 mil mortes no Brasil e a vacinação avançando lentamente, a situação continua a ser crítica. A média móvel de mortes permanece acima de mil por dia, e a quantidade de casos ativos ainda é alarmante. Embora a vacinação tenha mostrado um impacto positivo na redução das mortes, a falta de controle sobre as aglomerações e o descaso com as medidas de isolamento ainda são fatores que contribuem para a continuidade da pandemia.
O uso da cloroquina, portanto, não é apenas uma questão de saúde pública, mas também de um debate mais profundo sobre a ética, a ciência e o poder. A pandemia deixou claro que as decisões políticas podem ter um impacto direto na vida das pessoas, e que interesses pessoais e financeiros podem se sobrepor ao bem-estar coletivo. O que fica de lição é que, em tempos de crise, é preciso confiar na ciência e no conhecimento técnico para salvar vidas, e não em promessas vazias e soluções milagrosas.