A indignação seletiva e a falácia da moralidade

No Brasil, a moralidade pública parece se dividir de maneira simplista e hipócrita, com uma linha tênue entre os crimes que são valorizados e os que são minimizados, de acordo com quem os comete. Essa escolha seletiva de indignação revela a violência institucionalizada, que ainda exclui, silencia e estigmatiza certos grupos.

No pensamento popular brasileiro, o conceito de legalidade parece ser interpretado de maneira maniqueísta. De um lado, aqueles que podem sofrer violência sem grandes repercussões, e do outro, os que têm o direito de cometer crimes sem serem realmente punidos. É uma lógica que beneficia os poderosos e invisibiliza os marginalizados. O exemplo da travesti negra e pobre é claro: sua criminalização é instantânea, e a violência que ela sofre é minimizada ou ignorada. A possibilidade de uma travesti ser acusada de um crime como o infanticídio é suficiente para reverter qualquer avanço em seu processo de humanização, especialmente em um contexto onde, de fato, as travestis e mulheres transexuais enfrentam condições precárias e um sistema carcerário que as marginaliza ainda mais.

Enquanto isso, a história do Brasil, especialmente durante o regime militar, revela uma outra face dessa desigualdade: a violência institucionalizada contra aqueles considerados “não dignos” de serem vistos como parte da nação. Generais, que não são vistos como criminosos, praticaram atos brutais de tortura e assassinato durante o período da ditadura, com apoio do próprio Estado. Os desaparecimentos forçados e a tortura psicológica e física de brasileiros e brasileiras, incluindo crianças, são frequentemente relegados ao esquecimento ou minimizados. Há uma quase reverência pela figura do militar, que é exaltada por certos setores da sociedade e colocada como modelo de heroísmo, enquanto as vítimas continuam a ser ignoradas.

Esse processo de “indignação seletiva” é uma expressão de transfobia e um reflexo de um caráter profundamente desigual e discriminatório. A incapacidade da sociedade de olhar para as ações de seu próprio governo, ou de examinar criticamente suas próprias atitudes em relação a grupos marginalizados, demonstra a falácia da moralidade que sustenta tais disparidades. Enquanto algumas vidas são valorizadas e outras desvalorizadas, o que se perde é a capacidade de agir com justiça e humanidade.

O que se observa é uma sociedade que aplica seus próprios padrões de moralidade de forma arbitrária e que se recusa a refletir sobre as desigualdades estruturais que continuam a afetar milhões de brasileiros, especialmente os mais vulneráveis. A indignação é seletiva, e o silêncio em relação aos horrores da ditadura e ao tratamento das travestis e mulheres transexuais reflete um caráter que não é capaz de reconhecer sua própria hipocrisia. Em um país onde a moralidade parece ser um privilégio de poucos, a verdadeira justiça se torna um ideal distante e muitas vezes inacessível para aqueles que mais precisam dela.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

This site uses Akismet to reduce spam. Learn how your comment data is processed.