O pensamento indígena, conforme exposto por Viveiro de Castro, desafia a lógica ocidental, apresentando uma visão da realidade em que mitos e práticas não são apenas explicações do passado, mas fontes ativas de transformação constante.

O conceito de mito nos povos indígenas, conforme Viveiro de Castro, é profundamente diferente da forma como a cultura ocidental o compreende. Quando questionados sobre práticas como a reclusão, as lutas, as escarificações ou os rituais de vômito, os indígenas não respondiam com a explicação habitual de que “sempre foi assim, é nosso costume”.
Em vez disso, eles recorriam aos mitos para explicar os efeitos dessas práticas, não a sua origem. Por exemplo, em vez de afirmar que uma prática ancestral foi passada através das gerações, a explicação dada poderia ser: “foi Lua quem ensinou a não comer peixe na gestação para evitar o inchaço da barriga e o nascimento complicado”. Isso demonstra que os mitos indígenas não são relatos do passado distante, mas sim explicações de fenômenos no presente.
Esses mitos, para os povos indígenas, não são idealizações de um passado mítico, mas sim uma partição ontológica entre os arquétipos originais e a realidade presente. Não se trata de uma idealização de um passado remoto, mas de uma tradução do passado como algo que, na verdade, ainda se reflete na atualidade. Assim, o mito não é visto como uma história que conta a origem de algo, mas sim como uma forma de entender o mundo a partir de protótipos ideais. Ele funciona como uma moldura que interpreta e organiza o presente através de signos e símbolos.
Uma ilustração disso é a visão que os povos indígenas têm do encontro das águas do Rio Negro e do Rio Solimões, que ao se unirem formam o gigantesco Amazonas. Para eles, esse evento mítico não é apenas uma explicação da origem do rio, mas uma representação do processo contínuo e dinâmico de transformação que se desenrola no presente. Não é simplesmente o relato de como o mundo foi criado, mas uma explicação de como ele continua a se manifestar, de forma fluida e interconectada.
Essa visão se assemelha, em certo sentido, ao conceito platônico do “mundo das ideias”, mas com uma diferença fundamental. Enquanto Platão via as ideias como abstrações que separavam a realidade do mundo material, os povos indígenas veem os mitos como uma forma de concretizar a realidade, sem desassociá-la do que é tangível e vivencial.
A ideia do Sol, por exemplo, para os povos indígenas, não é vista apenas como uma abstração ou uma metáfora, mas como um símbolo diretamente relacionado aos objetos com os quais se conecta no contexto do mito. O Sol é, portanto, um signo indireto que traduz a experiência prática e as correlações vividas em seu relacionamento com o mundo natural.
A “inconstância da alma selvagem”, como define Viveiro de Castro, refere-se à capacidade dos povos indígenas de se reinventarem constantemente. Apesar de serem frequentemente chamados de “povos tradicionais”, esses grupos são, na verdade, altamente adaptáveis e inovadores. Eles não se apegam a um passado fixo, mas enfrentam continuamente o que chamam de “fim de mundo”, o que significa que suas culturas e práticas estão em constante transformação e recriação. Essa flexibilidade é uma forma de resistência e sobrevivência em um mundo que impõe mudanças rápidas e, muitas vezes, destrutivas.
Portanto, ao contrário da ideia de um povo “preservador” ou “conservador”, como muitas vezes são vistos, os povos indígenas demonstram uma forma de pensamento profundamente dinâmica e criativa. Seus mitos não são um eco do passado, mas sim uma linguagem viva que interpreta e dá forma ao presente, permitindo a reinvenção constante diante das novas realidades que enfrentam. Eles são um exemplo de como culturas podem se adaptar e se transformar sem perder suas raízes, mas sim reformulando-as de acordo com os desafios do momento.