O período medieval foi uma época de progresso

Diante do obscurantismo do fundamentalismo religioso de hoje em dia, faz-se imperativo trazer contribuições públicas de elaborações mais inspiradas sobre o livro mais lido e menos compreendido do mundo: a Bíblia.

Como alguns sabem, além de jornalista, sou apaixonado por filosofia. E posso dizer tranquilamente que só entendi a Bíblia depois de estudar profundamente filosofia. Por isso, vou ousar aqui trazer uma contribuição.

O amor prático, que é o amar ao próximo como se ama a si mesmo, ensinado por Jesus de Nazaré foi concebido como a fonte de uma ética que transcende esse mundo e, por isso, concede ao sujeito que o pratica a “vida eterna”.

Gostaria de esclarecer esse conceito. Os gregos tinham concepção parecida quando tratavam de política. A vida eterna, segundo Aristóteles, se concretiza na polis grega, onde, por meio das ações e dos discursos realizados no espaço entre os homens, o sujeito adquire a permanência após a morte nos testemunhos e nas próprias repercussões positivas de suas ações na comunidade.

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Seu “espírito” (pneuma) seria, assim, mantido e cultivado como aquilo que “inspira” (empneo) os homens. Aristóteles, no entanto, sabia que tal inspiração adviria apenas da qualidade da pathos na retórica, que antes de ser um atributo do orador, é da plateia, cuja “disposição moral” e abertura poderiam fornecer o apassivamento necessário diante do discurso do outro para “atravessar a substância” (peítho).

Jesus de Nazaré elevou tal concepção a outro patamar ético-político. Por meio do amor (ágape), que na tradução bíblica original tem conceito próximo ao da caridade e da empatia (empathos), o sujeito adquire o norte ético inspirado pelo exemplo de rendição e perdão.

O sacrifício na cruz, que incorporou em seu gesto a ética enunciada no Sermão da Montanha (Mateus 5 – 7) “perdoai as nossas ofensas assim como perdoo aos meus ofensores” e “agir de tal modo que minha mão esquerda não saiba o que faz minha mão direita” teve repercussão tamanha que constrangeu a todos os homens.

Jesus se sacrificou pela turba que o ofendeu e sua retidão foi inabalada (“nenhum dos seus ossos foi quebrado”; João 17:36). A partir desse sacrifício, o batismo nas águas que caracterizaria ritualisticamente o compromisso com a lei judaica, não mais seria necessário.

Não seria mais preciso obediência e sacrifícios humanos. Os homens seriam então batizados pelo “espírito santo” (pneuma ágio) e, portanto, inspirados finalmente a produzirem o bem em livre-arbítrio, pelo exercício volitivo do espírito.

O conceito de espírito santo (pensamento separado) é basicamente o pensamento cujo esquema é inspirado pelo exemplo de Jesus de Nazaré, cujo amor absoluto determinou uma ética incontornável. Ele ensinou o caminho da verdade e da vida por meio do pensamento “santo”, distinto das massas, distinto das tendências, baseado no amor ao indivíduo, ao próximo, ao radicalmente diferente de mim.

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Charge. Autor desconhecido

A partir dessa prática, Jesus escapou do Hades (Atos 2:27), isto é, do perecimento, do esquecimento, e pegou a chave da vida eterna para dar aos homens através do exemplo (paradigma) de seu sacrifício. O batismo com o espírito santo é basicamente ser inspirado pelo paradigma do sacrifício do amor de Jesus para exemplificar a nós de forma absoluta o que é o bem invencível.

A existência do sujeito bom, que age conforme esse “caminho” ensinado na prática por Jesus, permanece, então, após o perecimento do corpo, pois as derivações do amor, do testemunho e da postura que inspira o bem no próximo também manterão uma memória viva nas múltiplas consequências benignas (bênçãos) inspiradas por seus atos.

Já o que existe em seu egoísmo perece junto ao seu corpo e é esquecido quando morre, processo este relatado na metáfora do fogo que consome e apaga tudo.

Tal postura ética baseada no amor e que é transcendente por natureza é o que eleva então o sujeito a Deus, o alfa e o ômega, o princípio e o fim, o universal (ou a Substância, segundo Spinoza: o Ser Absoluto, de forma que Deus não “existe”, Deus É).

É segundo o princípio da ética que coincide o homem com o Absoluto que Jesus disse que “ninguém vem ao Pai senão por mim”. No caso, o caminhar de Jesus, enquanto práxis filosófica, é coincidir seu coração com o coração de Deus, que é o amor inquebrantável como única lei. É “ver a face do pai” (João; 3:8) e ser “salvo” não apenas do inferno do esquecimento, mas do mal que o sujeito produzia contra os outros e contra si mesmo.

Essas questões são, por fim, belíssimas metáforas sobre o pensamento. A oração, que é o diálogo com Deus, coincide com o pensamento, que é o diálogo interior e silencioso do sujeito consigo mesmo desde Platão. Kant chamaria, assim, o Espírito Santo de Razão Prática em sua crítica da razão pura.

Para Kant, todo homem é um legislador na medida em que age conforme seu juízo, presincindo de toda obediência porque com sua razão prática o homem encontra os princípios que devem estar por trás das leis e, portanto, coincide sua vontade com o dever.

Tal proposição de Kant se deu pela necessidade de supremacia da razão em relação aos afetos no contexto iluminista do século XIX (não foi por apelo secular). No entanto, somente a ética professada por Jesus de Nazaré propõe o “pensamento amor”, o Amor Prático, que é o guia espiritual da ética afetiva, a qual traz verdade, porque revela o homem puro; traz retidão, porque é firme e corajosa; e traz vida, porque resiste à morte.

E tal bondade absoluta só poderia ser ensinada na prática por Deus, que deu seu filho como paradigma para que todo aquele que crer (pistúo) no sacrifício de Cristo – e, por crer, adquire a fé de que o amor é único caminho – “não pereça mas tenha a vida eterna” (João 3:5).

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