O golpe histórico

Em movimento de lamento ao golpe de 64 que completa 57 anos no dia 31 de Março, coloco a foto de uma vítima da ditadura. Com respeito, menciono Gelson Reicher, aluno da FMUSP morto em 1972.

Gelson Reicher – Wikipédia, a enciclopédia livre
GELSON REICHER. Fonte: Wikipédia

GELSON REICHER

Dados Pessoais
Nome: Gelson Reicher
Data de nascimento: 20 de fevereriro de 1949
Local de nascimento: São Paulo – SP – Brasil

Organização Política: Ação Libertadora Nacional (ALN)

Dados biográficos

Nasceu em 20 de fevereiro de 1949, em São Paulo (SP), filho de Berel Reizel Reicher e Blima Reicher. Morto em 20 de janeiro de 1972. Militante da Ação Libertadora Nacional (ALN).

Era estudante do 5º ano de Medicina na USP e diretor do Centro Acadêmico Osvaldo Cruz. Foi professor em cursos pré-vestibulares e participou de pesquisas científicas. Atuou no teatro universitário. Escreveu poesias e peças de teatro, compondo músicas para as encenações, muitas delas dirigidas por ele. Na ALN, juntamente com Iuri Xavier Pereira, foi responsável pela criação dos jornais 1º de Maio, Ação e O Guerrilheiro.

De família judia e único filho homem de Berel e Blima, deixou tamanha saudade que seu quarto, quase dez anos depois de sua morte, ainda era mantido exatamente como deixara desde a última vez que ali estivera.

Dados sobre sua prisão e morte

A versão oficial de suas mortes (Gelson Reicher e Alex de Paula Xavier Pereira) divulgada pela imprensa foi, conforme O Estado de S. Paulo, de 22 de março de 1972, a seguinte:

O volks de placa CK 4848 corre pela Avenida República do Líbano. Em um cruzamento, o motorista não respeita o sinal vermelho e quase atropela uma senhora que leva uma criança no colo.

Pouco depois, o cabo Silas Bispo Feche, da PM, que participa de uma patrulha, manda o carro parar. Quando o volks pára, saem do carro o motorista e seu acompanhante atirando contra o cabo e seus companheiros; os policiais também atiram. Depois de alguns minutos três pessoas estão mortas, uma outra ferida. Os mortos são o cabo da Polícia Militar e os ocupantes do volks, terroristas Alex de Paula Xavier Pereira e Gelson Reicher.

A nota informou os nomes falsos usados por Alex e Gelson junto aos verdadeiros e, graças a essa informação, os familiares de Alex puderam encontrar seus restos mortais, em 1979, enterrado como indigente com o nome de João Maria de Freitas, no Cemitério D. Bosco, em Perus, na cidade de São Paulo. Ao mesmo tempo em que assumiram a morte dos dois militantes e suas verdadeiras identidades por nota oficial, seus corpos foram enterrados com os nomes falsos.

Os restos mortais de Alex foram trasladados para o Rio de Janeiro, em 18 de outubro de 1980, após a ação de retificação dos registros de óbito, junto com os de seu irmão, Iuri.

Exumação tentará identificar corpo de guerrilheiro - Jornal O Globo
Alex de Paula Xavier Pereira Foto: Arquivo pessoal

Até a abertura dos arquivos do DOPS/SP, em 1992, o único questionamento que os familiares faziam à versão oficial era quanto ao fato de que, mesmo conhecendo a identidade de Alex, os órgãos de segurança enterraram-no com nome falso, para impedir o acesso ao seu corpo. Mas fotos dos corpos de Alex e Gelson foram encontradas nos arquivos do DOPS/SP e indicavam prováveis escoriações e hematomas.

A Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, mesmo sem poder contar com boas condições técnicas, reproduziu as fotos, que foram enviadas ao médico legista Nelson Massini, para a realização de um parecer.

Nos arquivos do DOPS/SP descobriu-se também o depoimento de um militante da ALN que, preso, indicara os possíveis locais de encontro com Alex. Esse fato derrubava a idéia de que o ocorrido foi um encontro casual, indicando que o volks teria sido seguido desde o bairro de Moema até a avenida República do Líbano, local próximo ao quartel do II Exército, onde teria acontecido o tiroteio, ou onde, provavelmente, se montou o “teatro” para forjar um tiroteio.

A análise das fotos e do laudo necroscópico assinado por Isaac Abramovitc e Abeylard Queiroz Orsini comprovou que a versão oficial não se sustenta. O novo laudo, elaborado pelo legista Nelson Massini, em 6 de março de 1996, atesta que Alex fora morto sob torturas. Nas suas conclusões, Massini afirmou:

Podemos concluir, com absoluta convicção, que o Sr. Alex de Paula Xavier Pereira esteve dominado por seus agressores que produziram lesões vitais e não mortais anteriores àquelas fatais, e assim submetido a um caso de tortura.

Gelson foi enterrado no Cemitério D. Bosco, sob o nome falso de Emiliano Sessa, mas sua família conseguiu, logo após sua morte, retirar o corpo.

Equipe de governo de Vargas, em que vemos Jango / Crédito: Wikimedia Commons

Vários depoimentos demonstraram que o envio de corpos, a necropsia e a liberação dos mesmos obedeciam a um ritual próprio, envolvendo geralmente o mesmo grupo de pessoas.

O que ocorria nas necropsias noturnas não tinha o testemunho de ninguém. O corpo do militante Gelson Reicher, por exemplo, enviado com nome falso pelos órgãos de repressão, tinha o nome verdadeiro escrito à mão na requisição de exame. A autópsia foi feita por Isaac Abramovitc, amigo da família de Gelson, que o conhecia desde criança.

Abramovitc encontrava-se diariamente com Gelson na garagem do prédio onde moraram. Mesmo assim, emitiu laudo e atestado de óbito com o nome falso, permitindo que o corpo fosse enterrado como indigente em Perus.

Em seu depoimento na referida CPI, ele alegou não ter reconhecido o rosto do autopsiado, embora tenha avisado ao pai de Gelson sobre o local onde o filho fora enterrado, o que possibilitou que fosse retirado dias depois para ser sepultado em cemitério judeu. A foto do cadáver mostra que o rosto não estava deformado, sendo facilmente identificado. Isaac Abramovitc também não soube explicar porque havia cometido esse “engano” outras vezes.

Os corpos de Gelson e Alex chegaram ao necrotério do IML vestidos apenas com cuecas. Como, quando, onde e por que foram despidos? E por que a morte dos dois só foi publicada 48 horas após o ocorrido? Estando oficialmente identificados, como mostram vários documentos, por que foram enterrados com nomes falsos?

PROVIDÊNCIAS POSTERIORES

Na CEMDP, o caso de Alex (206/96), tendo como relator Paulo Gustavo Gonet Branco, foi deferido em 2 de janeiro de 1997, por 6 votos a favor e 1 contra, o do general Oswaldo Pereira Gomes.

No caso de Gelson, o relator Paulo Gustavo Gonet Branco iniciou seu voto recordando que a CEMDP apreciou pedido semelhante, no caso de Alex de Paula Xavier Pereira, ressaltando, entretanto, que os casos deveriam ser analisados individualmente, pois a morte em confronto
armado com forças de segurança não gerava o direito aos benefícios da lei 9.140/95.

O relator propôs que, da mesma forma como procedera no caso de Alex, a CEMDP buscasse opinião técnica, sendo solicitado parecer criminalístico ao perito Celso Nenevê. O perito descreveu todas as lesões produzidas por tiro, concluindo não poder restabelecer a dinâmica do evento por falta de elementos.

Registrou, contudo, como ocorrera no caso de Alex, que o corpo de Gelson apresentava lesões não descritas por Abramovitc:Na região orbitária direita, na pálpebra superior direita, e na região frontal direita a presença de edema traumático, aparentemente associado a uma extensa equimose.

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Policiais agredindo um civil – Wikimedia Commons

A formação dessa lesão apresenta características da ação contundente de algum instrumento. Considerando, ainda, o descrito no laudo, quando do exame interno, “[…] Aberto o crânio pela técnica habitual, nada se constatou de interesse médico legal […]”, a sua formação aparentemente não deve estar ligada a ação lesiva dos projéteis que atingiram a cabeça da vítima.

Na linha mediana da região frontal, no dorso do nariz e na região orbital esquerda, próximo da região zigomática, manchas escuras, com características genéricas de lesões, sem que se possam definir suas naturezas, e características do(s) instrumento(s) que as produziram. O mesmo pode ser observado para a região deltóidea esquerda e região mamária direita.

Outrossim, é provável que Gelson Reicher, a partir do momento que teve os quatro membros atingidos por projéteis de arma de fogo, não oferecia mais condições de resistência armada nem tão-pouco de fuga. Considerando ainda que o edema e a equimose verificados na região orbital direita e circunvizinhas sejam de natureza contusa, as quais para sua formação necessitam, obrigatoriamente, do contato físico entre o instrumento e a vítima, por conseguinte, de grande proximidade.

Esse ferimento não coaduna com o quadro comumente verificado em tiroteios, sendo plausível que essa lesão contusa tenha sido produzida após as lesões pérfuro-contusas de seus braços e pernas, e em circunstâncias que não estão esclarecidas, considerando que a vítima provavelmente apresentava-se dominada em decorrência dos ferimentos em seus membros.

Na CEMDP, o caso referente a Gelson (246/96) foi aprovado em 2 de outubro de 1997, por 6 votos a favor e 1 contra, do general Oswaldo Pereira Gomes.

Em 9 de novembro de 2007, por iniciativa da SEDH-PR, em parceria com a diretoria do Centro Acadêmico Oswaldo Cruz (CAOC), foi inaugurado na sede daquela entidade estudantil um memorial em homenagem a Gelson Reicher e Antônio Carlos Nogueira Cabral. Este último, ex-presidente do CAOC e militante da ALN, assassinado no Rio de Janeiro em 12 de abril de 1972.

No bairro Jardim da Glória, São Paulo homenageou Gelson dando seu nome a uma praça. O Rio de Janeiro deu o nome de Agência Irmãos Iuri e Alex Xavier Pereira a um centro de atendimento da Secretaria do Trabalho.

FF: Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil 1964-1985. IEVE- Instituto de Estudos Sobre Violência do Estado e Imprensa Oficial, São Paulo, 2009.

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