Mentiras que parecem verdades

Uma das técnicas usadas pelos negacionistas ou bolsonaristas em geral é o da informação contraditória ou paradoxal. É só gripezinha, mas tem que fazer tratamento precoce, também, cloroquina é melhor que vacina, mas o Brasil sob o comando de Pazuello é campeão de vacina. E aí se espalha a “mezzo verdade, mezzo calabresa” de que somos o 5º país que mais vacinou, atrás em total de vacinas apenas dos EUA, China, Reino Unido e Índia.

Qual o problema dessa “verdade”? É que ela esconde a informação que de fato interessa, que é a vacinação em relação à população geral, ou, mais precisamente, em relação aos vacináveis. Para simplificar apresentaremos dados da relação da vacinação com a população geral e considerando o total de doses em primeira e segunda inoculação juntas. Observar o percentual de vacinados e não o número bruto do total de vacinas é fundamental, pois o que se pretende com vacinação é cobertura vacinal capaz de promover a imunização da população e assim interromper a disseminação do vírus, estancando a pandemia.

Nem tudo se mede considerando a proporcionalidade em relação à população, não sendo sempre uma informação relevante. Por exemplo, o Brasil ser o maior exportador de soja é uma informação que dá conta da importância estratégica do país nesse mercado, independente da proporção de grãos por habitante. Se formos pensar nos impactos dessa mercadoria na composição da renda, ai sim, saber quantas pessoas se beneficiam dessa cadeia produtiva será um dado relevante.

Então vejamos o que quer dizer a informação de que somos o 5º em número total de vacinas (de doses). Significa que somos – em relação à população – o 38º país em doses da vacina inoculadas, aqui indistintamente se a primeira ou segunda dose. Significa que estamos atrás do Chile, nosso “hermano” latino-americano, mas também de Marrocos, Lituânia, Turquia e Estônia, para não ficar nos países mais desenvolvidos como EUA, Reino Unido, Espanha, Alemanha, e mais outros 29 países.

O Brasil inoculou 4,9 doses por cada 100 brasileiros (4,9/100), sendo 3,7/100 da primeira dose e 1,2/100 da segunda dose. Atenção, aí está outra verdade que pode ser mal interpretada, pois são valores que não se somam, sendo que quem toma a segunda dose necessariamente tomou a primeira. Na hipótese mais desejável, todos que tomaram a primeira, tomarão a segunda dose para assim serem tecnicamente imunizados. Resumindo, a vacinação atingiu 3,7 por cento da população, ou como os dados aparecem, 3,7/100.

Estamos de fato muito longe da necessária cobertura vacinal e, como sempre, com realidades regionais muito díspares. Considerando a primeira dose, São Paulo é o segundo estado que mais vacinou, com 5,7/100 (Amazonas é o primeiro com 6,7/100). No fim da fila está o Pará com 1,9/100. Paraná e Santa Catarina que estão entre os estados que mais sofrem com a segunda onda da pandemia estão em 19º e 20º em número de vacinados, mais um elemento que descortina que não temos uma estratégia coordenada de vacinação, que deveria levar em conta mais fatores para a distribuição de doses, para além da população dos estados.

Sem coordenação desde sempre nessa pandemia, pior, com um plano de espalhar a doença atrapalhando seu controle, seja por falta de ações, por ações erradas (tipo cloroquina) e por uma eficiente máquina de guerra psicossocial que amalgamou uma hegemonia negacionista em amplas camadas da sociedade, além de uma forte apatia e negação (diferente do negacionismo) frente ao horror causado pelo inimigo invisível, atingindo também amplas camadas e, até o momento, isolando setores com maior consciência que não consegue mudar a correlação de forças, mesmo sendo um grupo numeroso e influente.

O resultado até agora é catastrófico, uma grande tragédia nacional e os dados indicam que estamos longe de reverter a crise pandêmica, ao contrário, os números nefastos devem avançar com vigor. A falta de vacinação em massa e a relutância das autoridades adotarem medidas mais radicais de confinamento e a agressividade do bolsonarismo em por em cheque as medidas necessárias, com Bolsonaro, desculpem o jargão surrado, dobrando a aposta do negacionismo, são o pano de fundo da desgraça iminente.

Os dados são eloquentes. Hoje temos o recorde de casos ativos, com 980,1 mil. Também novo recorde de média móvel de óbitos, que passa de 1.400. Há um consistente agravamento da pandemia que se espalha de forma bem mais uniforme por todos os estados, não sendo mais agravamento de surtos locais, como o caso de Manaus. Boa parte dessa disseminação se deve ao processo de interiorização da pandemia que avançou para 100% dos 5.570 municípios brasileiros, favorecendo uma dinâmica de circulação do vírus multivetorial, e não mais dos grandes centros em direção às cidades menores como foi no início da pandemia.

Se considerarmos o início da novembro do ano passado, quando tivemos as menores taxas de média móvel de mortes depois do pico da primeira onda da pandemia, observamos a subida rápida e consistente da mortalidade. No início de novembro a média móvel estava na casa de 300, depois foi avançando e de lá para cá tivemos:

– 11 dias na casa de 400;
– 14 dias na casa de 500;
– 07 dias na casa de 600;
– 15 dias na casa de 700;
– 01 dia na casa de 800;
– 09 dias na casa de 900;
– 36 dias na casa de 1.000;
– 05 dias na casa de 1.100;
– 03 dias na casa de 1.200;
– 02 dias na casa de 1.300;
– 01 dia na casa de 1.400 (hoje).
Esses blocos de centenas não se deram necessariamente em dias consecutivos, mas a tendência foi a de se agruparem em períodos com predominância do valor. A partir de 1.200 são dias consecutivos. Lembrando que já são 44 dias consecutivos com média móvel de óbitos acima de mil.

Qual a perspectiva de saídas? Ontem e hoje alguns panelaços fizeram-se ouvir. Pode ser pouco, mas pode ser um começo. Precisamos de povo. Acordão das (Z) lites? Não acredito que dê em nada.

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