Como a ignorância alimentada pela internet se reflete na realidade das faculdades de medicina, onde os abusos se tornam norma e o corporativismo se sobrepõe à ética
A reflexão sobre boçalidade proposta por Eliane Brum, especialmente a que ela atribui às redes sociais, encontra ressonância em um fenômeno mais profundo, que se manifesta nas universidades, particularmente nas faculdades de medicina. A boçalidade, neste contexto, vai além das falácias e discursos vazios propagados virtualmente. Ela ganha um corpo real quando práticas violentas e antiéticas se tornam parte da cultura institucional de algumas faculdades, como a PUCCAMP, onde professores e alunos se envolvem em um ciclo de abusos em nome de uma tradição corporativa.
Recentemente, a denúncia de abusos ocorridos durante os trotes na PUCCAMP, que envolvem agressões físicas, humilhações e violência psicológica, expôs uma realidade que vai além do simples “provocar” o outro, mas configura uma agressão institucionalizada contra os estudantes que não se submetem a esses rituais. A denúncia de trotes que envolvem violência extrema, como socos no esterno, tapas na cara, simulações de sexo oral com objetos e exposição a piscinas de urina e fezes, é apenas a ponta de um iceberg que revela uma rede de intimidação que visa excluir quem se opõe a esse modelo.
Cidinha, Caiá e Jiviane, professores da PUCCAMP, foram figuras-chave nesse sistema, sendo acusados de conspirar contra os estudantes que se opunham a essas práticas, e de utilizar sua posição de autoridade para defender a continuidade de um sistema de agressão e exclusão. Mesmo com a denúncia, que contou com provas documentais e depoimentos dos próprios alunos, a resposta de parte dos estudantes e professores foi um movimento de apoio incondicional aos acusados. Mais de 200 estudantes entraram em greve, e 20 professores se demitiram em solidariedade, evidenciando um corporativismo que prioriza a defesa de líderes de uma “família” que perverte a relação pública entre docentes e discentes em favor de interesses privados.
É nesse contexto que se observa uma forma de boçalidade institucional, onde a ignorância e a violência são defendidas sob a justificativa de uma tradição ou de um corporativismo que submete a ética e os direitos humanos a uma hierarquia perversa. Esse fenômeno não é apenas uma questão de palavras em uma rede social, mas de atitudes concretas que geram um ambiente de opressão e perseguição dentro das instituições de ensino superior.
A greve em defesa de professores acusados de promover violência e abusos não é uma greve por melhorias na educação ou pela defesa dos direitos dos trabalhadores da saúde. É uma greve por privilégios, por manter a “família med” intacta, sem qualquer reflexão crítica sobre os danos que essas práticas causam aos estudantes e à sociedade como um todo. Em vez de lutar por melhorias nas condições de ensino, pela qualidade do SUS ou pelo bem-estar dos profissionais de saúde, os estudantes e professores envolvidos nesse movimento se opõem à justiça, protegendo um sistema que favorece a exclusão e a violência.
A resposta institucional da PUCCAMP, que demitiu os professores envolvidos após o processo investigativo, é um passo importante, mas a resistência de alguns segmentos da comunidade acadêmica revela que ainda há muito a ser feito. O corporativismo, a violência e o privilégio de uma minoria não podem ser tratados como práticas aceitáveis em um ambiente que se diz democrático e republicano. A educação médica precisa, urgentemente, se libertar de práticas que perpetuam a exclusão e o elitismo, e abraçar um modelo mais inclusivo e ético, que respeite os direitos dos estudantes e promova uma verdadeira educação de qualidade, voltada para o bem-estar social.
A reflexão sobre boçalidade de Eliane Brum, aplicada à dinâmica das faculdades de medicina, revela um aspecto obscuro da nossa sociedade, onde, apesar das denúncias e das evidências, a violência e o privilégio ainda têm uma força desproporcional. O que se precisa é uma reação não apenas contra as palavras vazias da internet, mas contra a realidade institucionalizada da violência, que se disfarça de tradição e se perpetua em nome de um corporativismo que só beneficia poucos.