Era noite, numa travessa da Augusta cujo exato nome pouco importava, e Joana despedia-se dos amigos na cordial calçada do barzinho em que estava. Percebia-se amada e exultava pelo agradável tempo que passara há pouco.
Abraçava um a um, sempre mantendo o afável sorriso em seu rosto, e destinava o olhar às pupilas enegrecidas de seus companheiros, tentando garantir assim que aqueles encontros, semelhante à sua recordação amigável e persistente, perpetuassem-se.
Terminando o cumprimento, andava hesitante em direção ao seu carro, fitando os colegas esporadicamente para demonstrar que os acolhia, sem, entretanto, esconder a expectativa de que isso por acaso lhe fosse retribuído.
Enquanto dirigia-se ao veículo na progressivamente escura rua, segurava seu vestido para retê-lo do abusado vento que a importunava. Fazia-o também para garantir movimentos aos seus braços, evitando que ficasse embaraçada com aqueles membros indolentes para o caminhar de uma moça.
Com a outra mão, detinha sobre a orelha apetrechada por ornados brincos em forma de “apanhador de sonhos” um cacho de cabelo que insistia em cobrir suas têmporas envaidecidas. Acabrunhando-se, a menina se infiltrava na penumbra.
O redor silenciava-se e ela, com o mesmo ritmo, retorcia seus pensamentos, retirando-o dos amigos e voltando-os para si. Apressava o passo sem perceber, impelida pelo instinto contrário ao desconhecido que a alfinetava sobre um possível perigo iminente.
“Mocinha, deixou cair!”. Uma voz feminina e áspera a deteve. Voltando-se curiosa observou uma figura: uma mulher um tanto feminina, um tanto desairosa, sentada num degrau em frente à calçada.
Segurava um cigarro um tanto pensativo, cuja amargura ainda exalava pelo nariz empalidecido. Este, por sua vez, contrastava com o par de olhos bizarramente sombreados e com a boca ruborizada pela excelência do artifício.
Um tanto sedutora, a mulher soergueu-se, denunciando-se também um tanto despida, e capturou do chão um singelo objeto constituído por pequeninos mandalas.
Também um tanto confiante e altiva, a mulher esteou seu lânguido braço, o qual contrastava com as unhas bizarramente vermelhas, e posicionou-se a entregar o objeto. Joana logo notou que lhe faltava o enfeite de sua orelha, agora exposta pelo seu cabelo contido, e revolveu-se, esticando o braço para retomar o brinco.
“Obrigada.” Disse ela grata, mas ao mesmo tempo indagante sobre aquela figura. Havia indignado-se com tamanha penúria de pudor e com aquela confiança que intimava a sociedade.
Viu o diferente e temeu, repudiou internamente e instaurou seu senso de superioridade – ou de defesa – sobre aquela paradoxal mulher – concomitante e harmonicamente incólume aos julgos e enodoada pela imoralidade. O litígio desamparava a estima de Joana e lhe fazia querer enquadrar aquela mulher à ordem, em consonância com ela mesma e com a sociedade.
Toda essa contração visceral estimulada pelos seus pensamentos e difundida entre seu peito e seu estômago refletiu-se indomavelmente num espasmo de seu olhar, o qual, por mais inexpressivo que fosse, não escapou da sabedoria irreverente da mulher voluptuosa.
“Não há de que” – respondeu – “mas o que exatamente teme?”. Antes que pudesse responder, Joana sentiu seus dedos serem envolvidos pelos da misteriosa mulher. Sua postura mostrava formas nunca antes vistas por ela – ao menos, não tão de perto.
Era uma irreverência que pela peculiaridade transfigurava-se em atração; era uma condição superior, menos amedrontada, mais independente. Aquela mulher sumarizava, por sua diferente indiferença, o auge da admiração.
Ainda controvertida por seus pensamentos transfixados tanto pela atração quanto pela repulsão, Joana sentiu-se conduzida pela mão. Além da força física, havia um magnetismo extasiante que a aquiescia.
A lentidão de sua mente somava-se àquela persuasão, deixando-a infantilmente vulnerável. Antes que pudesse entender o que se passava, foi arrebatada pela volúpia e imediatamente silenciada pelos lábios daquela mulher.
O sabor daquele toque umedecia-se com o batom e sintetizava um tempero aos seus princípios. O odor adocicado e lascivo eriçava seu olfato e impugnava sua resistência psicológica.
Ela estava entregue àquele beijo apenas pelo instinto único e inquestionável de prazer. Sua consciência legitimou tudo como uma auto-equivalência àquela mulher; como se tivesse, por meio do beijo, finalmente galgado mais um passo para um dia ser alvo da admiração que sentia. Joana queria deixar de encantar-se com o que considerava superior.
No mesmo suspiro do beijo, a mulher voluptuosa afastou-se detidamente e olhou Joana ainda embevecida pela execução.
“Como você se vende rápido.” – sem solenidades afirmou – “agora pouco eu a vi estupidamente entregue aos seus amigos e evidentemente aversiva a mim” – dizia olhando de soslaio para o bar na distante esquina posterior às sombras – “Mas agora, apenas pela minha repreensão, você imediatamente se entregou a mim” – finalizou a mulher.
Libertando a “mocinha”, aquele espírito feminino volveu-se e pôs-se a caminhar num intrépido e contínuo nomadismo noturno.
Joana, catatônica, ainda não sabia interpretar o que ocorrera. Acabara de turbilhonar-se por diversas sensações, embora houvesse uma unívoca, derradeira e incontrolável excitação.
Apesar desse veredicto, encontrava-se perdida entre seus amigos e aquela intrigante mulher. Beijara uma estranha que a apartou imediatamente do que considerava correto. Nunca antes percebeu-se tão desolada. Entretanto, a epifania não tardou.
Logo, as palavras desconexas fizeram-se substância e Joana notou o quão vendida ela era; o quão facilmente ela se entregava aos grupos em troca de aceitação. Vendia sua personalidade pelo pagamento da aprovação; era uma prostituta, uma puta da moral.
Entrando no carro, ainda cálida pela excitação, tentou encontrar-se entre os dois meios que vivenciara. Por um instante, não sabia mais quem era, pois percebera que se resumia à uma projeção dos outros.
Apesar disso, havia uma nova certeza: ela não era mais a mesma. Sentada no banco, antes de pôr o cinto, pensou em se masturbar, mas deixou para depois. Não sabia ainda ao certo em quem pensaria: se naquela mulher ou se na nova Joana que se constituía.