O racismo estrutural no Brasil não se limita apenas às estatísticas ou aos discursos ideológicos, mas se reflete no comportamento cotidiano e na violência simbólica e real imposta a determinadas camadas da população.
O episódio de dezembro, envolvendo as primas Emily Victoria e Rebeca Beatriz, vítimas de uma bala perdida enquanto brincavam na calçada de sua casa, é mais um caso trágico e representativo da violência que atinge as periferias brasileiras, especialmente a população negra. As duas meninas foram assassinadas por um tiro de fuzil, disparado em uma comunidade da Baixada Fluminense, em Duque de Caxias, no Rio de Janeiro. Este é apenas um dos muitos exemplos que, ao lado de outros como os assassinatos de João Pedro, de 14 anos, e de George Floyd, nos Estados Unidos, ilustram a violência racista que atravessa sociedades com histórias coloniais e escravocratas.
Esses casos nos convidam a refletir sobre o modo como as estruturas de opressão e desigualdade social se perpetuam, não apenas por meio de políticas públicas ou ações institucionais, mas, principalmente, através de comportamentos sociais e de relações intergrupais que ainda possuem ecos do período escravocrata.
Em outro incidente, de repercussão recente, o empresário Ivan Storel, em Alphaville, São Paulo, proferiu insultos contra policiais militares durante uma abordagem por violência doméstica. Storel, um homem branco e empresário de alto escalão, usou sua condição social como um meio de humilhar os policiais, com palavras como “você é um bosta. Você ganha mil reais por mês, eu ganho 300 mil reais por mês”. O episódio, capturado em vídeo, revela um comportamento de superioridade, mas também carrega uma carga simbólica carregada de racismo e de uma mentalidade ainda arraigada de hierarquia racial.
O uso de palavras como “você é um bosta, que ganha 3 mil e eu 300 mil” não se trata apenas de uma comparação de status social ou de poder econômico, mas da naturalização de uma relação de opressão. A afirmação carrega em si a ideia de que a pessoa que ocupa a posição de “menor” — seja em termos econômicos, sociais ou raciais — é inferior, como se sua existência fosse menos valiosa ou menos digna. Storel, ao fazer essa comparação, evoca um traço de pensamento herdado do sistema escravocrata, que via os negros e pobres como subalternos, desprovidos de dignidade e destinados à subordinação.
Esse comportamento, como uma forma de expressão da elite econômica brasileira, reflete a lógica da escravidão que nunca foi totalmente superada. Para entender isso, é preciso compreender a figura do “capitão do mato”, o ex-escravo ou negro que, ao ser integrado ao aparato policial, se tornava um instrumento de controle das classes mais baixas e da população negra, assegurando que a ordem colonial e escravocrata fosse mantida, seja nas propriedades ou nas periferias urbanas.
O “capitão do mato” tem a função de manter a ordem nas classes subalternas, em um movimento de reafirmação da estrutura hierárquica. A afirmação de Storel, ao dizer que o policial é “macho na favela”, mas “um bosta aqui em Alphaville”, revela o lugar subalterno do policial, visto como um capataz que, de acordo com sua origem social e étnica, deve estar subordinado à elite. Essa relação, com raízes profundas na cultura escravocrata, define os lugares e as funções dos indivíduos dentro da sociedade, tornando a violência racista uma prática que não se limita à periferia, mas perpassa os comportamentos diários da classe dominante.
O pensador Jesse Souza é um dos maiores defensores da tese de que o racismo estrutural no Brasil está diretamente relacionado à herança do sistema escravocrata, que ainda rege as relações sociais e as estruturas de poder no país. Porém, a análise de Souza poderia ser enriquecida por uma abordagem antropológica, como a proposta por Viveiros de Castro, que considera a perspectiva cultural e a alteridade na compreensão das relações de poder. A visão da burguesia brasileira sobre a classe trabalhadora, especialmente sobre os negros, está enraizada em uma epistemologia de opressão que ainda hoje perpetua as desigualdades raciais e sociais.
O racismo, portanto, não é apenas um fenômeno individual ou pontual, mas uma estrutura que organiza as relações sociais, econômicas e políticas no Brasil. A perpetuação dessa estrutura, através de discursos, comportamentos e políticas públicas, cria um ciclo vicioso que marginaliza a população negra, tornando a violência, a discriminação e a exclusão uma constante. O episódio de Storel é mais um retrato dessa mentalidade, uma manifestação do racismo ainda presente nas camadas mais altas da sociedade brasileira, que precisa ser combatida de forma consciente e coletiva.