Racismo

Ainda sobre racismo, tivemos em meados de dezembro, um episódio bastante significativo para entender a linha por trás dos casos das primas Emily Victoria, de 4 anos, e Rebeca Beatriz, de 7 anos, foram vítimas de uma bala perdida e os responsáveis ainda não foram identificados.

As duas foram assassinadas por um tiro de fuzil enquanto brincavam na calçada em frente ao portão de casa, na comunidade do Barro Vermelho, em Gramacho, Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. 

Outros dois casos que ganharam notoriedade, foi do assassinato de João Pedro (14) com um tiro nas costas em sua casa pela Polícia Militar no RJ e do assassinato de George Floyd com uma joelhada no pescoço no meio do asfalto de uma rua de Minneapolis (USA), em que pesem as diferenças históricas e culturais.

Durante a tarde, a polícia militar de São Paulo foi atender a um chamado em Alphaville, bairro nobre da região metropolitana, de violência contra a mulher. Ivan Storel (49), um empresário branco acusado pela esposa de agressão e ameaça, resistiu à prisão e humilhou os policiais que foram atender a ocorrência.

Conforme vídeo exposto na reportagem da Ponte, o agressor, que também se intitula empresário, entoou “Você é um bosta. É um merda de um PM que ganha mil reais por mês, eu ganho 300 mil reais por mês. Quero que você se foda, seu lixo do caralho”, disse.

Em seguida, após supostamente falar no telefone com alguém que ele identifica como secretário de segurança, ele continua: “Você não me conhece. Você pode ser macho na periferia, mas aqui você é um bosta. Aqui é Alphaville”.

Entre insultos e xingamentos, Storel proíbe a aproximação do policial com ameaças. “Não pisa na minha calçada, não pisa na minha rua. Eu vou te chutar na cara, filho da puta”. No vídeo, os PMs não esboçam qualquer reação.

Ora, não se enganem, este é um retrato da tradição escravocrata brasileira. Pode-se até fazer críticas sobre a pedância burguesa ou sobre o autoritarismo do fascismo brasileiro. Mas me choca mesmo é o ranço escravocrata, um traço ainda mais atrasado do que as duas últimas categorias, ululante no comportamento de Storel e tão representativo da cultura herdada no Brasil.

Se analisarmos as falas pela noção de perspectivismo, vemos que Storel não fala do simples lugar de proprietário do meio de produção ou de pretenso militar. Ele fala do lugar de “dono do outro”, como se este outro não apenas estivesse rompendo as “relações de produção” ou “desobedecendo uma autoridade”, mas rompendo “a ordem natural” das coisas.

Pois, o racismo é expressão máxima da naturalização das relações sociais de desigualdade e opressão, apelando para um discurso inclusive biologizante, por vezes eugenista e pseudo-evolucionistas, para justificar e eternizar desigualdades socialmente produzidas.

Assim, a violência racista é uma reação violenta de busca pelo reestabelecimento do “direito natural” da raça superior.

Quando Storel falou, “você é um bosta, que ganha 3 mil e eu 300 mil”, que ali era Alphaville onde o policial não era nada, ele está evocando diferenças como se estas fossem significativas de um estado ontológico de cada um. “Você é mil frente a 300 mil”, ou seja, eu “sou” 300 vezes você.

Historicamente, lembra a indignação de um senhor de engenho caso o Capitão do mato se voltasse contra o senhor ao invés de conter a senzala.

O impeto do senhor é chicotear o capitão do mato para estabelece-lo em seu lugar de origem (ex-escravo). Pois, é isso que a polícia militar é para a elite econômica brasileira, capitães do mato, ou seja, pessoas retiradas da periferia e da classe média baixa (e negros) e voltada para a contenção da favela e da pobreza (e dos negros) para que as propriedades, o trabalho e, sobretudo, as relações servis não sejam desfeitas.

O capitão do mato tem o papel de oprimir pelo senhor, sendo-lhe sua extensão, para manter as relações de opressão e, sobretudo, a perspectiva de submissão e rebaixamento das classes inferiores.

A fala “na favela você é macho, aqui você é um bosta” é também representativa do papel ontológico relativo do outro conforme sua posição intermediária e de intermediação entre “aqui” e a “favela”. No caso, de servir de arma do Alphaville contra a favela.

A herança escravagista brasileira marca suas relações de forma muito significativa. Muito facilmente podemos interceptar na metafísica do discurso autoritário e no modo de dominação do público e do privado traços da escravidão.

Jesse Souza e hoje é o autor que mais defende essa tese, embora eu ache que ele se beneficiaria muito do perspectivismo antropológico de Viveiro de Castro como ferramenta para essa análise.

Como se vê, o escravismo é a forma da estrutura epistemológica da burguesia brasileira, o que inclusive a atrasa até mesmo dentro das formas de reprodução capitalista.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.