O que mais ameaça a democracia?

Analisando o discurso que permeia os atos dos protestos, percebo que a maior ameaça atual à democracia não gravita necessariamente em torno do autoritarismo de quem pede o retorno da ditadura, ou não aceita o resultado das urnas ou não tolera conscientemente a esquerda enquanto projeto socialista.

Sem dúvidas estes são os discursos mais aberrantes e, por isso, são os que mais chamam a atenção, mas eles só nos saltam aos olhos porque são, digamos assim, movimentos mais velhos do que a penicilina, sobre os quais todos nós já estamos cansados de pensar por sempre usarmos o fascismo tradicional como referência.

Por mais aberrantes que estes fatos sejam, não deveria ser menosprezado o fato igualmente flagrante de que estes movimentos são minoritários na massa atual de direita que ocupa as ruas.

Eles só aparentam de imediato homogeneizar o todo porque são justamente os alvos das reportagens e das fotos que se tornam chacotas da esquerda. Bolsonaro, que é o maior representante desta direita caricata (que adora armas e despreza LGBTs), tem uma adesão de 8%.

Embora seja grosseiramente incômodo e precise ser sempre objeto de alerta, não deveria ser o nosso maior objeto de preocupação. Pois, o que de fato tem a adesão da maioria da classe média presentes nos atos, na verdade, antes de um posicionamento político determinado e violento, é a flagrante aversão a tudo o que é político.

Ontem fomos espectadores de um momento constrangedor em que alguns líderes da direita, mais especificamente do PSDB, também acusados de corrupção, foram igualmente ostracizados do ato e praticamente linchados.

Protestos ocorrem em todas as regiões do país | Agência Brasil
Manifestação  contra  o  governo e a corrupção na movimenta Esplanada dos Ministérios  José  Cruz/Agência Brasil

As massas da classe média que estavam nas ruas não aparentavam estar tão afeitas a discernir posições políticas, mas sim a mostrar sua indignação contra a corrupção geral. Entretanto, é senso comum que essa corrupção não precisa vir de uma condenação ou fato notório praticado pelo indivíduo em questão para ser levada a sério. Basta ser político para ser digno de suspeita.

Há razões históricas e sociais para essa generalização, principalmente devido à enorme onda de denúncias públicas que periodicamente estampam os jornais brasileiros com um novo escândalo. No entanto, não se trata apenas de passar por cima de eventuais exceções.

A plausibilidade da corrupção por parte de um político aleatório é de tal forma que as massas dispensam maiores provas. Implicitamente, ser político está amalgamado a ser corrupto. Tanto que o flagrante orgulho atual utilizado para angariar fé pública, segundo as entrevistas com os participantes dos atos, é se dizer apolítico e se posicionar contra todos os partidos.

É nesse sentido que deve ser compreendido o discurso declarado de que a grande questão em torno do PT não é ele ser de “esquerda”, num sentido de socialização de riquezas (por mais controversa que essa classificação seja para os grupos mais à esquerda do que o PT), mas sim ele ter capitaneado “o maior escândalo de corrupção de todos os tempos”. No dia 13, ficou confirmado que as massas não individualizam a questão no PT, mas apenas o analisam como sobressalente, isto é, cuja retirada é mais urgente por questão de tamanho.

Não deveria ser novidade que os movimentos mais autoritários da história não são os uni-partidários, mas os que se opõem a toda e qualquer conduta política.

De certo modo, toda morte radical da democracia – que deixa de ser suspensa, como numa ditadura partidária, e passa a ser abandonada do horizonte social, como no totalitarismo – tem como pré-requisito a socialização do desprezo pela classe política. E este desprezo deriva do um movimento predominantemente moral.

As pessoas “de bem”, que mais buscam o sucesso e o enriquecimento por dentro das regras do que seguem as leis em todos os sentidos, desprezam os políticos porque eles flertam com o “vagabundo”, isto é, com aquele que enriquece por meios alternativos em relação padrão empreendedor, seja esta pessoa um cidadão eleito, seja quem se organiza em coletivos ou partidos.

O desprezo à atividade política se inicia, então, pela presunção de que se envolver em projetos e discussões sobre questões não relacionadas à renda são atividades inúteis. Inegavelmente a filosofia hoje sofre da mesma crise. No caso do cidadão eleito e com cargo político, o ressentimento se cristaliza pela convicção de que se trata de uma pessoa que ganha salários altos sem fazer nada relevante.

Tanto que moralmente a consciência do eleitorado se afaga quando se averigua que o político cumpriu sua batente, com horário de entrada e saída do trabalho, como um operário, e que atingiu metas de produtividade na aprovação de leis ou fabricação de projetos. Bolsonaro sempre se engasga para responder que nunca teve um projeto de lei aprovado em 17 anos de atuação e o Tiririca passou a ser visto com melhores olhos na opinião pública quando foi comprovadamente um dos deputados mais presentes no congresso.

Seguindo esta linha de pensamento, nota-se entre a classe média que o desprezo pelo PT vem principalmente pela sua “ineficiência”, como se as decisões políticas devessem cumprir exclusivamente as metas econômicas.

Para esta classe, um bom político, hoje, deve representar a figura de um bom gestor. Aquele que gere é aquele que mantém e reafirma o estado de coisas, buscando extrapolar os limites do real pela intensidade de suas realizações.

Ao mesmo tempo, pressupõe-se que todo o horizonte de possibilidades se reduz à realidade existente, o que é a-político por excelência na medida em que anula quaisquer potencialidades de transformação.

É dançando por essa ideologia que Moro foi condecorado unanimemente no ato como “herói da nação”. Suspeita-se que esse carisma não provém apenas de suas investidas recentes contra Lula, mas do fato dele ser um juiz concursado “trabalhador”, muito mais fácil de ser admirado pelas pessoas de bem, que são as que supostamente gostam de ser trabalhadoras acima de tudo.

Curiosamente acaba sendo a direita brasileira quem mais exacerba o valor do trabalho atualmente, ainda que no século XIX o movimento teórico de Marx de elevar o trabalho a mais alta atividade humana e de fazer um manifesto em prol de uma sociedade de trabalhadores ateste que o apreço pelo trabalho tenha sido inicialmente uma pauta de esquerda.

Embora isto seja uma das maiores perplexidades que tornam a conjuntura política atual complexa, acaba sendo ela que denuncia a maior ameaça ideológica à democracia, pois onde não deve haver política não deve haver espaço para o debate, para confrontos de ideias ou para qualquer atividade de persuasão.

Em outras palavras, a razão de ser deste fluxo da realidade que não pode ser interrompido é suficiente por si só para tornar a democracia objeto dispensável na organização do Estado, pois mais do que confrontar a democracia, despreza-a como um instrumento pouco pragmático e obsoleto em relação às necessidades pós-políticas da classe média.

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