Hoje eu quero falar sobre boçalidade

Quando falo de boçalidade, lembro de um texto da Eliane Brum sobre a boçalidade do mal, em que ela critica a hostilidade de usuários do hospital Albert Einstein à presença de Guido Mantega, ex-ministro da fazenda do governo Lula, enquanto acompanhava a sua esposa que passaria por uma cirurgia.

O termo boçalidade para Eliane vem do fato de quase ninguém pensar com profundidade hoje em dia e, mesmo assim, insistir em expor esse “eu oculto” da ignorância através do distanciamento que a internet proporciona.

QUANDO A BOÇALIDADE IMPERA – Contra o Vento
Charge | Autor desconhecido

Portanto, a boçalidade seria um fenômeno específico das redes virtuais, onde o poder de dizer o que se pensa eliminou o pudor de pensar melhor sobre o que se fala. Que a democracia cultural é uma benção é um fato, mas críticas precisam ser feitas a certos discursos para não cairmos no fascismo.

Ser criticado pelo que se diz faz parte dessa democracia. Pois, como diz o ditado, quem está na chuva é para se molhar.

Em 2015 três professores da PUCCAMP foram demitidos. E aparentemente não são quaisquer professores. Conhecidos como Cidinha, Caiá e Jiviane, os três eram alguma espécie de liderança da conhecida “família med puccamp” e foram denunciados na CPI de violações aos direitos humanos nas universidades paulista. A denúncia, seguida de copiosa prova documental, iniciava-se pelos trotes:

“eles relataram que tudo começa quando o estudante entra na Puccamp. É esse o momento em que ele perde a sua identidade, ganhando um apelido pelo qual será conhecido. As perversidades só pioram a partir daí: decorar hinos que fazem ode ao estupro e agressão física, levar socos no esterno (osso localizado no tórax), tomar tapas na cara, simular sexo oral com banana e andar numa piscina de urina, fezes e vômito.” (http://goo.gl/mNsxr4)

Além disso, essa violência seria uma forma instituicional de adentrar à “família” e, com isso, se projetar profissionalmente. As figuras resistentes seriam, então, perseguidas e ostracizadas nos circuitos acadêmicos por causa dessa rede que essa “família” gerava.

“De acordo com os denunciantes, o ‘suicídio social’, como a tal exclusão é chamada entre os alunos, é uma forma de repreender os que não se enquadram no modus operandi de veteranos, que atuariam com anuência de professores e diretores.(…)

O grande temor, ainda segundo os alunos, é de retaliações ao final do curso, como impedimento em residências médicas, já que seus potencias supervisores, tecnicamente, seriam os veteranos.”

Cidinha, Caiá e Jiviane foram convocados pela CPI e interrogados pelo deputado Adriano Diogo. Constatou-se que eles são as figuras emblemáticas desse sistema anti-republicano, que perverte a relação pública entre profissionais por uma fraternidade de teor privado, por meio da qual os membros se beneficiariam numa nova espécie de nepotismo.

O orgulho tradicional pela faculdade e o corporativismo médico é o que une parte dos estudantes da puccamp e os fazem aceitar a violência e a extorsão como forma de demonstração de Amor Institucional.

A professora Jiviane, conforme prints de grupos de what’s app e áudio de reuniões levados à CPI, havia articulado uma perseguição à turma que se opôs ao trote, alegando que os estudantes que queriam participar do trote “estavam sendo oprimidos” pelos que não queriam participar, pois “não queriam ser excluídos pelo resto da faculdade”.

Após apuração e processo sindicante, a reitoria da PUCCAMP decide pela demissão destes professores, anunciada hoje pela manhã. E a família med puccamp, em resposta, entrou em greve. 200 estudantes paralisaram as atividades e o atendimento hospitalar para fazerem uma manifestação em frente à reitoria e 20 professores se demitiram em protesto como forma de solidariedade aos professores agressores

Como representante de estudantes de medicina, tenho o dever de me posicionar conforme as deliberações tiradas nos espaços da DENEM, a executiva de curso, e a DENEM se opõe ao trote e também tirou como deliberação o apoio às vítimas de perseguição que denunciaram as atrocidades que ocorrem nas faculdades de medicina. É por isso que me dou a liberdade de fazer este texto.

Se a boçalidade do mal, segundo Eliane Brum, vem da força do anonimato virtual, ela certamente se esqueceu de olhar os fenômenos de algumas faculdades de medicina de SP. Vir à público defender agressor e fazer greve, quando outrora não declararam apoio em defesa dos estudantes prejudicados pela crise do FIES, é uma demonstração clara de indignação seletiva.

A greve atual não é por novas contratações, não é pela qualidade profissional dos trabalhadores da saúde, não é por melhorias no SUS, é pela defesa particular de líderes da família med puccamp, núcleo corporativo de privilégios locais.

Não existe pudor pelo que se defende. Não existe pudor em defender privilégios publicamente. As palavras “violação de direitos humanos” não geram constrangimento algum.

O Ego desta parcela dos estudantes se mantém inabalado a ponto de bradar com ar de indignação contra a “injustiça” da justiça quando feita. Fazer uso das ferramentas dos movimentos sociais de direito, como greve e paralisações, para reivindicar privilégios, é o cúmulo da falência da educação médica, que começa lá no vestibular segregacionista e bitolante e culmina na soberba institucional representada por fraternidades que ensinam que ser médico é estar acima do bem e do mal.

Ainda bem que não são todos os estudantes, nem a maioria, que pensam assim, mas que essa minoria é articulada e ameaça a maioria com efetividade é um fato.

E é este o trabalho que educadores e entidades universitárias têm: garantir que a universidade não seja local de desenvolvimento do corporativismo, nem que a totalidade acadêmica se contamine por tendências anti-republicanas, onde a alienação em relação ao tema de direitos sociais é absolutamente prejudicial para a promoção efetiva de práticas em saúde pelos médicos.

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