Quando a defesa de privilégios se sobrepõe ao compromisso com a justiça social
A crítica da jornalista Eliane Brum sobre a “boçalidade do mal” ressoa com uma situação emblemática no contexto educacional, mais especificamente nas faculdades de medicina de São Paulo, que se caracteriza pelo corporativismo e pela defesa de privilégios, mesmo diante de atitudes agressivas e antiéticas. Em sua análise, Brum destaca como o anonimato nas redes sociais alimenta a boçalidade, onde a ausência de reflexão profunda permite que opiniões ignorantes sejam amplificadas sem o devido pudor. Porém, ela parece esquecer que essa boçalidade também se manifesta fora do universo virtual, em espaços como universidades e faculdades.
Em 2015, a PUCCAMP se viu envolvida em uma situação que exemplifica bem o conceito de boçalidade em sua forma mais perversa. A denúncia de estudantes sobre práticas violentas realizadas durante os trotes revelou um sistema de humilhação institucionalizado, que fazia parte de um processo de aceitação na “família” da faculdade de medicina. As vítimas da violência eram estudantes que se opunham ao trote, sendo perseguidos e excluídos, com o temor de retaliações profissionais no futuro. A prática de submeter os calouros a agressões físicas, humilhações sexuais e até torturas psicológicas visava fortalecer os laços dentro da instituição, criando uma rede de proteção e privilégios para os veteranos e professores envolvidos.
A denúncia gerou uma investigação pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) e resultou na demissão de três professores que se destacavam como líderes dessa prática perversa. Contudo, a resposta de parte dos estudantes foi um ato de solidariedade para com os agressores, com 200 alunos e 20 professores se colocando contra a decisão da reitoria e organizando uma greve em protesto. Esse comportamento evidencia a falta de pudor em defender publicamente a violência e os privilégios, algo que se opõe a qualquer valor de justiça social e direitos humanos.
Essa defesa, articulada por líderes de uma fraternidade corporativa, expõe uma indignação seletiva, pois a greve não visa melhorias para os trabalhadores da saúde, qualidade no SUS ou a contratação de mais profissionais, mas sim a defesa dos interesses de um grupo fechado. O corporativismo médico, que se perpetua dentro de algumas faculdades, promove uma visão elitista e descompromissada com os princípios republicanos. Em vez de lutar por melhorias sociais ou pela ampliação do acesso à saúde, essa “família” busca manter suas prerrogativas, perpetuando um ciclo de exclusão e violência. O uso de movimentos como a greve para defender privilégios é, sem dúvida, uma falha na educação médica, que deveria formar profissionais comprometidos com a ética e a justiça social.
Esse fenômeno de corporativismo e boçalidade não é isolado, mas representa uma questão mais ampla que afeta as universidades em diversos contextos. A ausência de reflexão crítica e a proteção de grupos que perpetuam práticas antidemocráticas e discriminatórias são sinais de um sistema educacional falido, que perde a capacidade de formar profissionais comprometidos com a mudança e o bem comum. Felizmente, nem todos os estudantes compartilham dessa visão, mas a força dessa minoria é um alerta para a necessidade de vigilância constante em relação aos princípios de direitos humanos e à ética nas instituições educacionais.