Enquanto a vacinação contra a COVID-19 avança, as medidas adotadas para garantir que o maior número de pessoas seja imunizado geram discussões sobre como garantir que os recursos disponíveis, como as vacinas, sejam usados de forma justa e eficiente, sem prejudicar os mais vulneráveis.
A chamada “xepa da vacina” surge como uma tentativa de otimizar a aplicação das doses remanescentes nos frascos de vacina, que contêm dez doses e devem ser utilizadas em um período muito curto após a abertura. Por exemplo, as vacinas da AstraZeneca devem ser aplicadas em até seis horas, enquanto os frascos do Instituto Butantan têm o mesmo limite de tempo. Quando os frascos são abertos e não há uma demanda imediata de pessoas da fila prioritária, a medida permite que as doses restantes sejam utilizadas em outras pessoas, muitas vezes com a organização de uma fila de interessados no final do expediente.
Essa estratégia, embora bem-intencionada, levanta questões sobre sua justiça e equidade. Quando a população prioritária, como os profissionais de saúde e os grupos de risco, ainda não foi completamente vacinada, o que justifica a disponibilização de “sobras” para pessoas fora desses grupos? Em muitos municípios, como São Paulo e Rio de Janeiro, a implementação da “xepa” gerou polêmicas, principalmente por falta de transparência na forma como as doses foram distribuídas.
A principal crítica é que a medida pode criar um cenário de desigualdade no acesso às vacinas, favorecendo aqueles que têm mais disponibilidade de tempo ou recursos para se deslocar até as unidades de saúde e aguardar a oportunidade de serem vacinados. Além disso, em algumas situações, a “xepa” pode gerar aglomerações nas unidades de saúde, comprometendo as medidas de distanciamento social e colocando as pessoas em risco, em vez de protegê-las.
No entanto, a medida também tem um aspecto positivo: a utilização das “sobras” pode evitar o desperdício de vacinas, o que, em tempos de escassez, é uma questão importante. Ao permitir que as vacinas restantes sejam usadas, a estratégia visa vacinar o maior número de pessoas possível. O dilema, portanto, está em equilibrar a eficiência da imunização com a necessidade de garantir que todos tenham acesso igualitário à vacina.
Para resolver esse impasse, a sanitarista e epidemiologista Gulnar Azevedo, presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), sugere alternativas que poderiam melhorar o processo de imunização sem recorrer à “xepa”. Entre suas sugestões estão a expansão do horário de atendimento nos postos de saúde, a criação de estratégias para alcançar pessoas em situação de vulnerabilidade (como o uso de veículos públicos para visitar domicílios) e a revisão do calendário de vacinação para garantir que todas as pessoas sejam contempladas de forma mais organizada.
Além disso, a comunicação clara e transparente sobre o processo de vacinação e as prioridades estabelecidas é fundamental para evitar mal-entendidos e garantir que a população entenda seus direitos. A educação popular em saúde é um pilar essencial para assegurar que todos tenham acesso às informações necessárias para se proteger e garantir seu direito à saúde.
O dilema da “xepa da vacina” reflete uma realidade complexa, onde o poder público precisa encontrar um equilíbrio entre a eficiência do processo de vacinação e a justiça no acesso à imunização. Em tempos de pandemia, garantir que todas as pessoas sejam vacinadas de maneira equânime e segura deve ser a prioridade.