A crise política e a resistência ao compartilhamento do bem público

Ao analisar a conjuntura política atual, é necessário repensar a ideia de mobilização e suas implicações, pois a atual movimentação da direita brasileira reflete uma resistência à ação política genuína, baseada na convivência e compartilhamento do bem público.

O principal erro das análises da conjuntura política atual tem sido considerar a mobilização visível da direita brasileira como uma verdadeira mobilização política. A política, desde os seus primórdios, dizia respeito aos polites, aqueles que, segundo Aristóteles, se realizavam plenamente dentro da polis — ou seja, em um espaço comum, onde as ações dos indivíduos se entrelaçam e contribuem para o bem coletivo. A política, portanto, é uma ação-entre-os-homens, um movimento que acontece na coletividade, que busca a convivência e o entendimento das diferenças em prol do bem comum.

No entanto, a sociedade brasileira contemporânea, em grande parte, se afastou desse entendimento. Como destaca o pensador Dunker, uma das mais valiosas mentes da USP, vivemos em uma sociedade altamente influenciada pelo modelo do condomínio, onde há uma recusa em compartilhar o bem público. Este espaço público, essencial para uma política verdadeira, é reduzido a um ambiente onde o que importa é a copropriedade, em que indivíduos com o mesmo poder compartilham um espaço, mas com a preocupação de afastar-se daquilo que é diferente. Nesse contexto, não há uma comunidade genuína, mas um aglomerado de iguais que não sabem lidar com as diferenças.

A resistência ao que é político, portanto, surge dessa recusa a suportar aquilo que dissolve a noção de realidade absoluta que essas pessoas têm. Quando se compartilha um espaço comum, é preciso aceitar a pluralidade de ideias, visões e identidades. No entanto, muitos se opõem a isso, preferindo se isolar e viver em um espaço onde o diferente é visto como uma ameaça à sua estabilidade. Esse comportamento reflete uma sociedade que prefere a ignorância e o isolamento à convivência verdadeira.

Essa dinâmica tem sido um dos maiores obstáculos à construção de uma política efetiva no Brasil. A falta de disposição para se envolver com as realidades além dos próprios muros tem prejudicado a possibilidade de se criar uma política genuína e coletiva. As universidades, por exemplo, muitas vezes resistem a projetos de extensão que realmente se insiram em outras realidades, preferindo supervisões distantes, sem um compromisso real com a transformação social. Além disso, muitos indivíduos não conseguem mais compreender a importância de viver em uma república, onde o bem comum exige concessões, respeito pelas diferenças e uma constante negociação para a convivência pacífica.

O que está em jogo aqui é a nossa capacidade de ultrapassar as fronteiras autoimpostas pelas nossas realidades individuais e construir, coletivamente, uma sociedade que realmente saiba o que significa viver em conjunto. Para isso, é necessário enfrentar a resistência que se manifesta como um reflexo do medo das diferenças e o desejo de manter um espaço onde o “outro” é constantemente marginalizado. O desafio é resgatar a essência da política, que é a convivência verdadeira entre os homens, e isso só será possível quando aceitarmos que o bem público é, antes de tudo, um espaço compartilhado por todos.

Panelaços contra Bolsonaro acontecem em várias cidades do país - Jornal O  Globo
Panelaços. Foto: O Globo

No cenário político atual, as manifestações e as críticas têm se distorcido, muitas vezes deixando de ser um exercício legítimo de opinião para se tornarem reações simplistas e até autoritárias, refletindo uma falta de verdadeira pluralidade e debate político.

Toda denúncia, em muitos casos, já parece carregar em si a ideia de punição, e todo questionamento de opinião é visto como um ataque à liberdade de expressão. Da mesma forma, expressões de julgamento individual são frequentemente interpretadas como arrogância. Esse fenômeno de distorção da comunicação e do debate é especialmente visível nos centros acadêmicos, sindicatos e até mesmo no sistema partidário, onde a atuação política parece ser substituída por uma gestão que mais se assemelha a um condomínio, com gestores que se transformam em síndicos, limitados pela visão unidimensional e não pela pluralidade de pensamentos e interesses.

Um exemplo claro dessa transformação está na forma como os panelaços são vistos. Ao invés de uma manifestação política contra projetos governamentais, muitos os interpretam apenas como uma ação de insatisfação com a gestão petista, mas essa insatisfação é, em grande parte, uma expressão do “sindicismo”. Isso significa que a crítica não busca um debate político, mas sim a rejeição da gestão do PT a partir de um ponto de vista limitado, próprio de quem não consegue enxergar a pluralidade política necessária para a gestão pública.

Não há dúvida de que o PT merece críticas políticas, como qualquer outro partido ou governo, mas para que essas críticas sejam eficazes, é necessário primeiro criar um espaço legítimo para o debate político, onde diversas visões possam ser apresentadas e discutidas de forma construtiva. Sem isso, as críticas acabam se tornando apenas reações impulsivas, sem um conteúdo político real. E isso é o que define, em grande parte, a atual forma das manifestações: um protesto que não visa ao diálogo, mas à imposição de uma opinião, sem espaço para a negociação.

É nesse contexto que a crítica à forma anti-política de muitas manifestações deveria ser a primeira preocupação daqueles que realmente desejam disputar projetos políticos. O que temos visto, porém, são manifestações que, mais do que representar uma disputa de ideias, acabam refletindo imposições autoritárias de um grupo de “condôminos” mal-humorados, que não conseguem ou não desejam dialogar com as diferenças. Esse é um reflexo do enfraquecimento da política como um espaço de construção coletiva e da transformação do debate em uma simples troca de acusações.

O desafio, portanto, é resgatar a política como um campo de interação e debate, onde as diferenças podem ser discutidas de forma respeitosa e construtiva, sem que se perca de vista o valor da pluralidade e do bem comum. Enquanto isso não acontecer, a política continuará sendo vista como um campo de disputa entre interesses pequenos e isolados, em vez de uma arena de diálogo e construção coletiva.

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