O amor na era digital: um olhar sobre o conceito de ‘amor líquido’

Na contemporaneidade, as relações humanas são impactadas pela tecnologia, que transforma os significados e as experiências do amor.

Recentemente, uma senhora no ponto de ônibus comentou que o romantismo estava morto, uma opinião que, apesar de não ser universal, reflete um debate crescente entre sociólogos modernos sobre a decadência das relações humanas. Com o avanço das tecnologias e a popularização de aplicativos de namoro como Tinder, Hornet, e até mesmo WhatsApp, muitos afirmam que estamos vivendo em uma era de relações cada vez mais frágeis. A facilidade de conectar-se sem a vulnerabilidade de um encontro físico parece, paradoxalmente, gerar um distanciamento emocional que enfraquece os laços afetivos.

A acessibilidade proporcionada por esses aplicativos tira o medo da rejeição, mas ao mesmo tempo facilita a ruptura de relações com a mesma facilidade. A ideia de que é possível descartar alguém com um simples toque ou mensagem parece refletir a tese de Zygmunt Bauman sobre a “modernidade líquida”, em que os laços humanos se tornam cada vez mais volúveis e efêmeros. O “amor líquido”, segundo Bauman, sugere que, na sociedade contemporânea, o amor e os relacionamentos se tornaram fluídos, sem um compromisso profundo ou duradouro.

Para compreender o conceito de amor líquido, é necessário, primeiro, resgatar a definição clássica de amor, que se baseia em princípios de comprometimento, profundidade emocional e estabilidade. O amor, em sua forma mais tradicional, é pensado como um vínculo profundo, que exige tempo, dedicação e vulnerabilidade. Porém, na era digital, a instantaneidade e a superficialidade parecem ter substituído esses ideais, criando um espaço onde os sentimentos são descartáveis e a permanência é uma exceção.

O impacto da tecnologia na forma como nos relacionamos é, sem dúvida, um fenômeno complexo. Por um lado, ela proporciona uma maior liberdade de expressão e de acesso, mas, por outro, gera uma sensação de insatisfação constante, alimentada pela busca incessante por novas conexões, muitas vezes sem profundidade. O desafio é encontrar um equilíbrio entre a conexão digital e o verdadeiro significado de afeto, resgatando o que Bauman chama de amor mais sólido e genuíno, em meio à fluidez da modernidade líquida.

Jovem naufragando nas mídias digitais. Banco de imagens

Na sociedade contemporânea, a fluidez das relações reflete a mudança de paradigmas sobre o amor, a paixão e o compromisso.

A obra Os Sofrimentos do Jovem Werther, do poeta alemão Johann Goethe, é uma excelente referência para entender a evolução da concepção de amor e seus impactos emocionais, culturais e até sociais. Publicado em 1774, o livro narra a história de Werther, um jovem pintor apaixonado por Charlotte, que, infelizmente, já está prometida a outro homem. A profundidade emocional da obra reflete a dor do amor não correspondido, mas também o sofrimento existencial que pode surgir de um amor idealizado, levando o protagonista a cometer suicídio.

O livro não apenas captura o romantismo do século XVIII, mas também gerou um fenômeno que ficou conhecido como “Efeito Werther”, onde uma série de suicídios foram influenciados pela tragédia do personagem. Essa obra é, de certo modo, um reflexo do romantismo intenso e idealizado, onde as emoções são vividas de maneira extrema, algo que se tornou raro nos tempos atuais, de acordo com Zygmunt Bauman e sua teoria da “modernidade líquida”.

Bauman descreve como as relações humanas no mundo moderno são caracterizadas pela efemeridade, pela insegurança e pela facilidade de desconectar-se a qualquer momento. As relações, assim como os objetos de consumo, são temporárias e descartáveis. Na “modernidade líquida”, não existe mais aquele amor sólido e duradouro, como o vivido por Werther ou pelos amantes de Romeu e Julieta. Ao invés disso, vivemos em um mundo onde é fácil estabelecer conexões e amizades, mas o maior atrativo é justamente a facilidade de se desconectar quando algo se torna inconveniente, até mesmo sem que haja um motivo claro.

Esse fenômeno é evidenciado nas chamadas “relações de bolso”, onde a busca por um vínculo emocional é muitas vezes superficial, visando mais o status ou a conveniência do que a construção de um relacionamento profundo. A ideia de que uma pessoa pode ser “usada” como um objeto descartável, semelhante a um celular ou outro item de consumo, reflete essa sociedade de consumo, onde as pessoas são substituíveis e não há mais uma necessidade de compromisso ou solidez nas conexões afetivas.

Bauman também levanta a ideia de que, ao contrário do conceito clássico de um amor único e imortal, as expectativas do que é considerado “amor” na atualidade foram diluídas. Embora muitos acreditem ter se apaixonado várias vezes, o sociólogo sugere que, na verdade, os padrões do amor foram significativamente rebaixados. O que era considerado um amor profundo e transformador, que poderia ser comparado à morte – única e definitiva – agora se torna uma série de experiências fugazes, nas quais a intensidade e o compromisso dão lugar à conveniência e à falta de profundidade emocional.

Embora essa visão de Bauman seja debatível, especialmente por aqueles que acreditam em formas mais dinâmicas de amor, ela fornece um ponto crucial para refletirmos sobre as transformações nas relações humanas na era digital. A facilidade de se conectar sem o risco da rejeição real, através de aplicativos de namoro ou redes sociais, tem alterado a forma como vivemos o afeto e o compromisso, e nos faz questionar: seria esse o fim do romantismo tradicional, como o retratado por Goethe? Ou estamos apenas em um novo ciclo, em que as relações se adaptam à modernidade líquida, ainda em busca de um novo significado de amor?

Amor Líquido - YouTube
Banco de imagens

O conceito de amor evolui com a sociedade, e tanto a tecnologia quanto o modelo clássico de amor romântico têm seus impactos.

Você toca em um ponto crucial sobre a forma como os aplicativos de namoro, como o Tinder, têm influenciado nossas relações interpessoais. A opção de “Continuar passando” depois de uma combinação parece ser um reflexo direto dessa cultura de consumo que, de alguma forma, aplica a lógica do descartável às nossas conexões humanas. Assim como escolhemos um produto com base na conveniência e em nossas preferências momentâneas, também tendemos a escolher, ou mesmo abandonar, pessoas com a mesma facilidade. Isso, na prática, cria um ambiente onde os laços humanos se tornam frágeis e fugazes, quase como um produto que pode ser trocado ou descartado a qualquer momento.

Bauman, com sua teoria da “modernidade líquida”, acerta ao observar como essas dinâmicas tornam as relações humanas cada vez mais efêmeras e instáveis. O que você mencionou sobre a busca por autoafirmação nos aplicativos de relacionamento, onde muitas vezes procuramos o reflexo de nós mesmos, é algo que reflete uma insegurança do ego. Essa insegurança acaba se projetando na relação com outra pessoa, que, em muitos casos, vira um espelho de nossas próprias carências. O problema, como você bem coloca, é que esse comportamento é muitas vezes inconsciente e difícil de evitar, o que contribui para uma forma narcisista de se relacionar.

Porém, ao contrário do que esses aplicativos possam sugerir, o amor real não pode ser reduzido a uma autoafirmação ou a uma necessidade de validação. Relações verdadeiras e significativas surgem de encontros entre pessoas com características, valores e visões de mundo que, muitas vezes, são muito diferentes. Essas diferenças podem ser o que torna o amor tão transformador, mesmo que no início pareçam criar um distanciamento. O amor, nesse sentido, é mais sobre aceitação e compreensão do que sobre a busca por um reflexo perfeito de si mesmo.

Você também faz uma reflexão importante sobre o modelo clássico de amor romântico. Embora a visão idealizada do amor seja muitas vezes retratada como algo sublime e perfeito, ela também tem o seu lado sombrio, como Goethe já sugeriu em Os Sofrimentos do Jovem Werther. O comportamento de Werther se torna progressivamente mais abusivo e possessivo à medida que a sua obsessão pelo amor idealizado cresce. Esse amor romântico, visto como puro e absoluto, revela sua face mais autodestrutiva e insustentável quando a idealização se transforma em dependência emocional e controle. A tragédia de Werther culmina com seu suicídio, que é, sem dúvida, a expressão máxima de falha dessa visão romântica de amor. Ao colocar o amor como algo infalível, perfeito e único, a realidade do sofrimento humano e das imperfeições do relacionamento é negada, levando a um colapso emocional quando as expectativas não são atendidas.

O amor romântico, como foi idealizado durante séculos, tem seus problemas, especialmente quando se torna possessivo, abusivo ou, como em Werther, leva a um sofrimento tão profundo que não há mais saída. O modelo moderno de relacionamentos líquidos e narcisistas não é a solução, mas a desconstrução dessas expectativas irreais do amor romântico pode ser um passo importante para encontrar uma forma mais saudável e equilibrada de se relacionar. A verdadeira conexão acontece não na busca por validação, mas no reconhecimento da outra pessoa como um ser completo, com suas próprias diferenças e imperfeições.

A fragilidade das nossas relações em Zygmunt Bauman. | by Laura Cachaneski  | Medium
“Vivemos em tempos líquidos, onde nada é feito para durar”.

Goethe e Bauman abordam o amor sob perspectivas distintas, mas ambos convergem na ideia de que a experiência amorosa é muito mais complexa do que a idealização romântica.

Você fez uma observação importante sobre Goethe, que, ao contrário do que muitos podem pensar, não romantiza o amor, mas o vê como algo que transcende a leveza e a beleza da idealização. O autor de Os Sofrimentos do Jovem Werther mostra o lado obscuro do amor, justamente ao expor como a obsessão por um amor idealizado e imutável pode levar ao sofrimento profundo e à tragédia. Goethe está, sim, contra o romantismo que tenta congelar um momento de felicidade no tempo, criando uma expectativa de que o amor será sempre perfeito e sem dificuldades. A realidade de um relacionamento verdadeiro, como você bem observou, é muito mais complexa, com peso, discussões e inseguranças inevitáveis quando duas pessoas tentam se conectar genuinamente.

Esse contraste entre a visão romântica e a realidade das relações pode ser o motivo pelo qual algumas pessoas preferem relações mais leves ou não monogâmicas, que não carregam o peso das expectativas românticas. Embora essas relações possam não se encaixar perfeitamente na definição de amor de Bauman, que envolve a perda da liberdade individual em prol de uma conexão mais profunda, elas podem, sem dúvida, oferecer experiências amorosas ricas e satisfatórias. O que a modernidade líquida e a sociedade de consumo nos trouxeram é justamente uma multiplicidade de formas de relacionamento, onde as pessoas buscam não a imposição de normas ou padrões, mas o prazer e a liberdade de explorar o amor de maneira diferente.

O ponto que você levanta sobre as experiências sensíveis e reais que podemos ter com alguém conhecido em um aplicativo também é relevante. O uso de plataformas de relacionamento pode ser visto tanto como uma barreira quanto uma ferramenta, dependendo de como a encaramos. Se o objetivo for buscar um reflexo idealizado de nós mesmos, então sim, elas podem se tornar uma barreira para o real contato humano. Mas se forem usadas com a intenção de construir algo genuíno, sem pressões ou expectativas irrealistas, os aplicativos podem ser uma ótima ferramenta para estabelecer conexões verdadeiras. A chave, como você bem disse, é saber o que procuramos nesse tipo de interação.

A reflexão de Bauman sobre o amor, especialmente na citação que você trouxe, é uma das mais belas e poderosas que ele apresenta. Ele descreve o amor como uma experiência de “abrir-se ao destino”, uma união de medo e prazer que se torna irreversível. Esse paradoxo do amor é o que o torna tão fascinante: é ao mesmo tempo uma fonte de prazer e de vulnerabilidade, algo que nos transforma para sempre. Quando encontramos essa conexão, como Bauman diz, o reflexo da nossa própria “incandescência” se encontra na outra pessoa, criando algo novo, algo maior do que nós mesmos. Essa metáfora sugere que o amor não é apenas uma busca por completude, mas uma experiência de transformação, onde nos entregamos à pessoa amada e, ao mesmo tempo, nos descobrimos mais profundamente.

O amor, portanto, não precisa seguir a linha de um ideal romântico ou das exigências da modernidade líquida. Ele pode ser uma experiência plural, fluida, mas também profunda e significativa, dependendo de como escolhemos viver essa conexão.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

This site uses Akismet to reduce spam. Learn how your comment data is processed.