O desenvolvimento da ética ao longo da história da filosofia revela uma transição da busca pelo bem individual e pela virtude para uma abordagem mais racional e, por fim, materialista da moralidade, refletindo as transformações da sociedade e do pensamento humano.
Na Ética a Nicômaco, Aristóteles propõe que a política seja a ciência do bem para o homem, marcando o início do pensamento ético teleológico, que visa à virtude do ser humano enquanto ente existencial. Para ele, a finalidade da vida humana seria alcançar a virtude, sendo a prudência (phronesis) uma qualidade essencial para viver de acordo com o bem. Nesse contexto, a ética aristotélica está intimamente ligada ao propósito de cada ser humano e à realização plena de sua natureza, com a virtude como elemento central.
Entretanto, o pensamento moderno introduziu um novo conceito de moralidade, com destaque para a filosofia de Kant, que se afastou do teleologismo de Aristóteles. Influenciado pelos racionalistas da época, como Spinoza, Kant propôs que a atividade ética, ou Moral, se fundamenta exclusivamente na Razão Pura Prática. De acordo com Kant, a moralidade não depende dos fins ou das consequências, mas deve ser seguida em prol do dever, uma obrigação que advém da razão independente das influências externas ou dos desejos individuais. Essa concepção kantiana sugeriu que a moralidade não está condicionada ao que o ser humano busca alcançar, mas sim ao simples ato de agir conforme a razão, em um imperativo categórico que se impõe a todos.
O aparente paradoxo entre as visões teleológicas e racionalistas se torna um avanço no entendimento da capacidade humana de emanar justiça de dentro para fora. Para Kant, o ser humano tem a capacidade intrínseca de determinar o que é justo, sem depender das estruturas sociais ou de uma moralidade imposta de fora. No entanto, a crítica a essa perspectiva surge com Feuerbach, que inverte a compreensão da ética, colocando o materialismo como a base da condição humana. Segundo Feuerbach, as ideias e as concepções intelectuais humanas não seriam frutos de uma razão pura e isolada, mas sim influenciadas pelas condições materiais e históricas da sociedade. Nesse sentido, o homem não seria o criador de seus próprios valores morais, mas um produto da moral predominante em sua época, refletindo as estruturas sociais que o moldam.
A síntese final dessa jornada ética ocorre com Marx, que, influenciado pela dialética hegeliana, propõe uma visão materialista da história e da moralidade. Marx, em sua abordagem do materialismo dialético, defende que a ética humana está profundamente ligada ao contexto histórico e social. Para ele, a atividade humana, que transforma o meio em que vive, é simultaneamente determinada pelo meio. O homem, portanto, não é apenas o agente de sua própria mudança, mas também está condicionado pelas forças históricas e materiais que o rodeiam. Sua moralidade e ética, então, não são apenas uma questão de razão pura ou virtude teleológica, mas sim uma reflexão da necessidade histórica e das condições materiais de sua existência.
Essa evolução do pensamento ético, da ênfase na virtude individual de Aristóteles à moralidade racionalista de Kant e, finalmente, à crítica materialista de Marx, reflete as profundas mudanças na compreensão da moralidade ao longo do tempo. A ética, assim, não é apenas um conjunto de normas universais ou um reflexo da razão pura, mas também é uma construção histórica e material que evolui conforme as condições sociais e as necessidades de cada época.

A ética pós-moderna e a tensão entre Real e realidade
O paradoxo da ética pós-moderna, com a flexibilidade moral e a busca pela verdade em um mundo de múltiplas realidades, coloca questões sobre como agir corretamente em um contexto social marcado pela incerteza e subjetividade.
A pretensa sociedade pós-moderna surge a partir de dois pressupostos paradoxais que, ao mesmo tempo, oferecem uma visão fragmentada da ética e do Real. O primeiro pressuposto é a negação de qualquer ideologia em favor de uma “realidade” que deve ser priorizada a todo custo, como se a ideia de ideologia fosse um obstáculo para o entendimento do mundo. François Furet, em O passado de uma ilusão, destaca como essa negação se manifesta particularmente contra o comunismo, tornando qualquer atividade ética rígida incompatível com a realidade. A lei moral, nesse contexto, deve ser cada vez mais flexível, algo visível em algumas atitudes da Igreja Católica liberal, como representada no papa Francisco, que concede permissões aos fiéis, flexibilizando as práticas religiosas para que a moral se adeque aos tempos modernos.
O segundo pressuposto da ética pós-moderna nega a própria existência do Real enquanto realidade objetiva. A “Coisa Real”, como a descrevem os pós-modernos, é considerada uma grande ilusão, em que nada pode ser afirmado como verdade absoluta, e todas as proposições são consideradas falsas até serem enunciadas. Assim, a ilusão se torna um elemento dominante, mais forte do que a realidade objetiva. Freud, em O futuro de uma ilusão, não vê as ilusões como algo necessário para enfrentar a realidade difícil, mas como um impulso mais real do que a realidade em si, sugerindo que as ilusões são uma forma de alterar a própria percepção da realidade.
Esse paralelismo entre o Real e a realidade cria um ambiente pós-moderno de confusão. O Real, entendido como um conjunto simbólico intangível e artificial, é algo que não pode ser fixado, enquanto a realidade, embora não contenha esse núcleo de “Real”, não deixa de existir. No entanto, ela se torna uma entidade maleável, sujeita à subjetividade e aos desejos que modelam a forma como ela é percebida. Essa maleabilidade, que pode ser vista como um risco para a filosofia, levanta a questão de até que ponto a perda do núcleo do Real pode levar ao “suicídio filosófico”, onde a realidade se desintegra em um mar de percepções individuais.
A ética nesse contexto pós-moderno não deve ser entendida como uma simples busca pela moral universal, mas como um processo dinâmico que lida com a modificação das coordenadas que estruturam a realidade. Slavoj Žižek, ao tratar do Ato Ético, explora a ideia de que a ética não deve ser uma negação da realidade, mas uma ação que compreende e modifica a forma como essa realidade se constitui. A ética, para Žižek, é um ato transgressor, um movimento que desafia a opinião pública, mas sem perder sua fundamentação moral.
Essa transgressão ética resgata a ideia de Kant sobre o dever a priori, onde o ato ético autêntico se distancia de seguir ordens ou flexibilizar leis para agradar aos desejos individuais. Em vez disso, a ética verdadeira é aquela que sublima o interesse pessoal e age pelo dever, com uma dupla-formalidade: a moralidade universal e o cumprimento do dever como fim em si. Nesse sentido, a ética pós-moderna se distancia tanto da moral rígida quanto da moral flexível, buscando um equilíbrio que permite a transgressão sem a perda de dignidade moral.
O exemplo do aborto ilustra essa questão ética em um contexto moderno. O debate sobre o aborto é um tema que, muitas vezes, se dissolve em subjetividades e opiniões diversas, mas a verdadeira resolução para esse problema está na ética, ou seja, na capacidade de agir com base em uma moralidade que compreende e respeita as diferentes realidades envolvidas. O ato ético aqui não é o de seguir uma moral unificada, mas de tomar uma posição fundamentada no dever moral que respeite a complexidade da situação e que, ao mesmo tempo, seja capaz de transgredir a moral convencional de acordo com as circunstâncias históricas e sociais.
A ética pós-moderna, portanto, não é uma simples adaptação ou flexibilização das normas morais, mas um campo de reflexão profunda sobre como o indivíduo pode agir de forma ética em um mundo marcado pela pluralidade de realidades e pela constante negociação entre o que é real e o que é percebido como real.
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Ética médica e a transparência no atendimento: a necessidade de preservar a subjetividade
Na medicina, como em outras práticas éticas, o dever primordial é o respeito às subjetividades, que deve ser priorizado sobre a conformidade com expectativas ou normas externas, como a adesão ao tratamento, que pode ser vista como uma busca pela conformidade a padrões objetivos.
No contexto da ética, a simples verdade de que a opinião pública deve ser respeitada como elemento fundamental para a ação ética coloca a ideia da omissão como imperativo categórico, especialmente em temas altamente subjetivos e polarizadores, como o aborto. No entanto, a resposta ética não reside em buscar convencer o outro ou em impor uma perspectiva particular, mas sim em preservar a liberdade do outro para formar sua própria opinião. Essa preservação da subjetividade, segundo essa visão ética, deve ser uma atitude de omissão: não se deve, em questões complexas e irresolúveis, tentar submeter o outro à própria vontade. A verdadeira ação ética seria permitir que a pessoa exercesse sua liberdade de decisão, preservando sua subjetividade, sem tentar converte-la ou invalidá-la com a própria opinião.
Isso se aplica diretamente à prática médica, pois o médico, ao tratar do paciente, deve ser guiado por essa ética da preservação da subjetividade. A medicina centrada na pessoa implica em uma relação de respeito, onde o paciente é tratado como sujeito ativo da sua saúde, com a garantia de que todas as informações, prognósticos e diagnósticos sejam apresentados de maneira clara e honesta. Esse princípio ético, que visa a transparência e a autonomia do paciente, se fundamenta em um dever moral a priori, sem a necessidade de buscar a aderência do paciente a um tratamento específico.
É interessante notar que a ética médica, ao adotar essa perspectiva, não se submete ao ideal de “aderência” como um fim último. A aderência ao tratamento, apesar de ser desejável, não deve ser o objetivo central, pois se o médico orientar-se por esse objetivo, pode acabar comprometendo a autonomia do paciente e sua liberdade de escolha. A ética médica deve ser orientada para o dever de informar, de tornar o paciente consciente de suas opções e do que está em jogo em cada decisão. A informação clara e franca, por sua vez, é a condição para que o paciente possa exercer seu livre arbítrio de forma legítima, sem ser manipulado ou coagido por expectativas externas, seja do médico ou da sociedade.
Esse ponto levanta uma questão crucial sobre a censura e o controle de informações. A censura, ao tentar omitir ou distorcer a realidade, impede que a pessoa faça escolhas fundamentadas. Se alguém acredita que a censura da informação é justificável, ele estaria implicitamente reconhecendo que sua própria decisão pode ser imprecisa e dependente de uma censura prévia. Em outras palavras, a censura impede o discernimento livre, o que é antitético à prática médica ética, que deve ser orientada pela transparência, pelo dever de informar.
Dessa forma, a ação ética do médico, ao contrário de buscar conformidade com um tratamento imposto ou expectativas sociais, deve ser definida pela clareza e pelo respeito pela subjetividade do paciente. Mesmo que isso resulte em uma “perda de aderência” ou em escolhas difíceis, o médico deve ser transparente, permitindo que o paciente tenha a autonomia de decidir com base em todas as informações disponíveis. Isso é especialmente relevante em situações em que o tratamento envolva decisões difíceis ou valores pessoais, como em casos de aborto ou de tratamentos paliativos.
A ética médica, portanto, deve se basear na premissa de que a saúde não é apenas a ausência de doença, mas a preservação da dignidade e da liberdade do paciente. A verdadeira adesão ao tratamento não se dá pela coerção ou pela pressão, mas pela capacidade do paciente de decidir livremente, com base na informação completa e sem distorções. A medicina deve ser, assim, uma prática que respeita a autonomia e a subjetividade, pois, como qualquer outra ação ética, ela deve ser guiada pelo respeito incondicional ao dever de agir corretamente, sem buscar, a todo custo, a conformidade com um ideal externo.

O impacto transformador da ética, quando exercida com base no respeito pela autonomia do paciente, pode alterar as dinâmicas da realidade, criando um efeito reverso positivo que modifica tanto a subjetividade individual quanto a coletividade em questões de saúde.
A adesão ao tratamento, como vimos, não pertence ao campo ético, mas sim à esfera da atividade objetificada — a ação com um fim. O objetivo ético não deve ser a conformidade ou a adesão em si, mas a preservação da liberdade do outro, garantindo que o paciente tenha autonomia para tomar decisões. A aderência ao tratamento, como uma estratégia, pode ser desejável, mas ela não deve ser imposta como um imperativo moral. A ética verdadeira surge quando a ação se alinha com o dever moral, independente dos resultados imediatos. A ação ética, em última análise, pode ter um impacto transformador, alterando não apenas a realidade no momento, mas também as percepções sobre o próprio tratamento ou situação.
Zizek nos ajuda a entender o impacto material do Ato ético e como ele pode alterar a realidade percebida. Um exemplo simbólico poderia ser um líder de partido que, ao ameaçar abandonar o grupo, cria um dilema baseado na opinião pública. A ação ética, nesse caso, seria identificar o líder como um chantagista e, ao expulsá-lo, modificar a percepção pública do partido. A partir dessa expulsão, o partido deixa de ser visto como frágil e perde seu estigma, passando a ser visto como mais forte e determinado em seus ideais. Essa transgressão ética transforma a realidade pública e redefine o significado do grupo. O impacto do ato ético, então, pode ser o motor de uma mudança perceptiva que transforma a realidade objetiva.
No contexto médico, a ética da transparência e do respeito à autonomia pode resultar, paradoxalmente, na adesão do paciente ao tratamento. Ao defender a liberdade de escolha do paciente, o médico pode estar criando as condições para que ele se sinta empoderado e, assim, mais motivado a seguir as orientações médicas. A aderência não deve ser forçada, mas pode ser um subproduto da liberdade de escolha, onde a autonomia do paciente é respeitada e suas decisões são apoiadas por informações claras e completas.
O exemplo do paciente que adere ao tratamento após ser respeitado em sua liberdade de escolha é um reflexo de uma ética que se preocupa com o bem-estar humano em sua totalidade. O impacto material dessa ação ética, que se fundamenta na transparência e no respeito pela subjetividade, é a transformação da experiência do paciente, que se sente mais seguro e confortável em sua escolha. Isso ocorre independentemente do resultado imediato, pois a verdadeira ética se dá pelo dever de agir corretamente, sem interesse pela obtenção de uma adesão imediata.
Assim, a ação ética no campo médico vai além da busca pela adesão do paciente ao tratamento. Ela se concentra no respeito pela autonomia do paciente, garantindo que ele tenha a capacidade de tomar decisões informadas e livres. Esse ato ético pode, por sua vez, ter um impacto transformador, tanto para o paciente quanto para o processo de tratamento como um todo, mostrando que a ética não se limita a resultados imediatos, mas pode gerar uma mudança duradoura e positiva na relação médico-paciente.