A Vontade e o Amor: A Filosofia de Santo Agostinho e a Interpretação de Jesus

Reflexões sobre a ambiguidade da vontade humana e a solução apresentada por Agostinho para a relação entre graça, amor e a ação do homem.

A vontade humana, conforme definida por Santo Agostinho, é a faculdade do espírito que nos move, sendo a força que nos impulsiona nas ações e escolhas. Embora presente desde o início da existência humana, a verdadeira compreensão da vontade enquanto faculdade, em si mesma, só se deu através dos escritos de Agostinho, especialmente em sua interpretação da Epístola aos Romanos de São Paulo. Nela, Paulo apresenta uma visão paradoxal da vontade, mencionando a tensão entre o desejo de fazer o bem e a propensão ao mal: “não faço o que quero, mas o que odeio, isso é o que faço” (Romanos 7:15). Essa ambiguidade interna da vontade se torna o foco da reflexão de Agostinho, que expressa, com sua famosa frase “Quaestio mihi factus sum” (tornei-me uma questão para mim mesmo), a perplexidade diante dessa dicotomia.

Para Agostinho, a vontade humana não é unificada em sua ação, mas, ao contrário, é marcada por uma duplicidade interna. Essa duplicidade se reflete no espírito, que se move de forma reflexiva, como descrito nos célebres conceitos de “cogito me cogitare” (penso que penso), “volo me velle” (quero querer) e “judico me judex” (julgo meu julgar), que expressam a capacidade do espírito de refletir sobre si mesmo e, portanto, criar um campo de tensão entre seus desejos e ações.

A natureza contraditória da vontade, em Agostinho, pode ser vista na forma como ela se coloca em relação a si mesma: a vontade diz “tu deves querer porque quero que queira” e, ao mesmo tempo, diz “não-quero, embora queira querer” (nollo me velle). Essa ambiguidade é a raiz da metáfora da carne e da razão que se observa na tradição filosófica ocidental, sendo responsável pela construção do conceito kantiano de mal radical, embora este não conhecesse profundamente o pensamento de Agostinho.

A grande contribuição de Agostinho, no entanto, reside em sua solução para o impasse da vontade: o Amor. Diferentemente de Paulo, que via a solução para a ambiguidade da vontade na graça divina — o perdão da impotência da vontade humana, uma graça que se manifesta como a revelação da consciência e da ressurreição — Agostinho propõe o Amor como a resposta. O Amor, segundo Agostinho, tem um poder afirmativo capaz de unir a vontade, resolvendo a divisão interna que impede o indivíduo de agir de maneira coesa. Esse Amor, que é pregado por Jesus, funciona como uma força que radicaliza os preceitos judaicos, fazendo com que o amor ao próximo se estenda até mesmo aos inimigos.

Ao contrário da graça de Paulo, que atua como uma benesse da ressurreição e que se concentra na salvação do homem pela intervenção divina, Agostinho vê o Amor como a solução que transcende a oposição entre carne e razão. É o Amor que salva o homem, pois ele une sua vontade, ao invés de simplesmente perdoá-la. Em sua interpretação, é somente quando a Lei não é mais uma imposição que passa a ser cumprida, sendo substituída pelo poder do Amor.

Assim, Agostinho constrói uma hermenêutica de Jesus distinta da de Paulo, oferecendo uma visão de salvação mais integrada à vontade humana, que, através do Amor, ultrapassa as limitações e contradições internas. Para Agostinho, o Amor não só resolve as ambiguidade da vontade, mas também torna a ação humana plenamente autêntica e harmônica com a criação divina.

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