Crônica de uma morte anunciada

A conta das vacinas era muito fácil de ser feita e me surpreende que ainda haja pessoas surpresas com as notícias de interrupção da vacinação. Foram distribuídas cerca de 9,8 milhões de doses da CoronaVac da Sinovac/Instituto Butantan e 2 milhões da AstraZeneca da parceria Oxford/Fundação Oswaldo Cruz (só para lembrar, ambas com insumos originários da China).

Se temos cerca de 7 milhões de trabalhadoras da saúde e o público da primeira fase era de cerca de 15 milhões, segundo contas do Ministério da Saúde, obvio que não bastaria. Detalhe, para cada pessoa, duas doses com 3 semanas de intervalo entre uma e outra.

Mas o que fizeram os estados e municípios? Fracionaram as prioridades em superprioridades, chagando em São Paulo a se vacinar somente pessoas idosas de 90 anos ou mais. Estamos falando de pouco mais de 200 mil pessoas numa população de 46 milhões. O que se decidiu então? Proteger os mais idosos? Nada disso. A decisão foi modo de afunilar a vacinação para que tentar dar tempo de chegarem mais doses, mas não está funcionando. Por razoes epidemiológicas, não faz sentido imunizar quem tem 90 em detrimento de quem tem 80, todos compõe o mesmo grupo de risco.

A interrupção da vacinação é catastrófica e se soma a catástrofe da lentidão da campanha. Vacina que pode faltar inclusive para a segunda dose em muita gente, fruto da desorganização e das dificuldades logísticas reais. Tal situação serve muito bem ao vírus que, darwinianamente, segue evoluindo para formas mais agressivas e mais capazes de infectar. Outro efeito é a desmobilização e a perda de confiança no processo que, se criasse revolta por vacina seria bom, mas pode gerar desalento, fenômeno bem conhecido de quem estuda desemprego em massa.

Outro risco é que forças do mercado atuem no vácuo, desacreditando de vez a vacinação universal, fazendo a mutação (não é só o vírus) do direito à vacinação em mercadoria vacina. O grave disso é que do ponto de vista da criação da imunidade coletiva é contraproducente. Não é vacina antitetânica, que você toma e está protegido. Tem que impedir a circulação do vírus para interromper a pandemia.

Por falta de um projeto estratégico de vacinação, não por falta de expertise que o SUS e seu corpo técnico tem de sobra, mas por decisão mesmo de criar entraves para a vacinação por parte dos negacionistas do governo central e os espalhados por todo canto, temos poucas vacinas e pulverizadas pelo país por critérios unicamente populacionais, sem considerar uma análise de como se desenvolve a pandemia.

Também, e isso é grave, joga-se o foco na vacina e se descuida dos processos de combate, como isolamento e cuidados de autoproteção, além de barreiras sanitárias e rastreamento de redes de contato. Tudo isso gera o que está acontecendo em Araraquara. O prefeito da cidade, Edinho Silva (PT), se manifestou no sentido de alertar que no seu município a situação se agravou rapidamente, inclusive com formas graves da doença terem atingido pessoas mais jovens com maior frequência do que era o comum.

A prefeitura enviou amostras para o Instituto de Medicina da USP que confirmou casos de infecção pelos variantes detectadas originalmente em Manaus e também a variante de Londres. Esse é o recado, não basta, como fez Dória, ficar disputando a primazia da vacina, o que se tem que disputar é sua efetiva (necessariamente rápida) inoculação o mais universalmente possível. Caso contrário, a crise se prolongará e se intensificara e falo aqui de uma terceira onda com o espalhamento do vírus mutante.

A vacinação completa 31 dias e mantem a média diária abaixo de 190 mil que projeta mais de 4 anos para vacinar 70% da população. São 30 dias com média móvel de óbitos acima de mil, maior serie desde o início da pandemia.

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