A banalização do absurdo: o perigo da normalização do impossível

O processo de naturalização do que antes era impensável ameaça a coesão social e o respeito pelas instituições públicas.

Vivemos um momento em que o que antes era considerado inaceitável, errado ou extremo, começa a se infiltrar em nossa sociedade de maneira cotidiana, em especial através das instituições públicas que deveriam ser os pilares da civilidade e da pluralidade. A banalização do absurdo, manifestada nas decisões que comprometem os direitos fundamentais e valores democráticos, nos coloca em um caminho perigoso. O Supremo Tribunal Federal (STF), órgão responsável por assegurar a Constituição, ao permitir o ensino religioso confessional em escolas públicas, é um dos exemplos mais emblemáticos dessa mudança de paradigma.

Ensino religioso: STF decide que escola pública pode promover crença  específica em aula de religião | Brasil | EL PAÍS Brasil
Ensino religioso. | Banco de imagens

A permissão de um ensino religioso confessional em um país plural como o Brasil é algo que soa inusitado, mas que, quando colocado no contexto de ataques à educação e ao livre pensamento, torna-se ainda mais alarmante. Esta decisão se insere em um cenário mais amplo de ataque aos direitos civis, como o combate à “ideologia de gênero” nas escolas e a intervenção do STF no Conselho Federal de Psicologia, permitindo terapias de reorientação sexual, que já haviam sido amplamente desconsideradas pela comunidade científica. O STF, que deveria ser a última linha de defesa contra abusos, endossou essas distorções com um comportamento surpreendentemente condescendente.

A reflexão sobre reformas políticas, trabalhistas e previdenciárias que ampliam privilégios políticos e enfraquecem direitos essenciais dos cidadãos, somada à atuação de um Congresso que perpetua figuras como Michel Temer e Aécio Neves – ambos flagrados em crimes, mas protegidos por instituições políticas – revela a fragilidade das instituições democráticas. A coerência e a moral parecem ter sido relativizadas, deixando a ética e os princípios constitucionais vulneráveis a interesses de poder.

O cenário político é ainda mais perturbador ao observarmos o crescimento de figuras como Jair Bolsonaro, apoiado por um número crescente de seguidores e liderando pesquisas de opinião. Essas movimentações políticas, marcadas pela defesa de uma ditadura militar que deixou profundas cicatrizes no país, indicam a ascensão de uma ideologia que desafia as bases democráticas e os direitos fundamentais.

O que antes era impensável se tornou, de alguma forma, parte do cotidiano. A normalização do absurdo gera uma erosão gradual dos parâmetros que definem o que é possível e desejável em uma sociedade democrática. Quando o improvável se torna aceitável, as instituições públicas, que deveriam ser o reflexo de um pensamento racional e do compromisso com os direitos humanos, se tornam cúmplices dessa transformação. Este fenômeno cria um abismo de desconfiança em relação às entidades responsáveis por garantir o bem-estar coletivo.

O perigo de todo esse processo, como nos alerta a história, é que, quando o absurdo é naturalizado, ele perde as barreiras que o limitavam e se torna uma força ilimitada. Isso fragmenta a sociedade em termos simbólicos e morais, criando uma distorção progressiva do que é bom e justo. A margem para o discurso de ódio cresce, alimentada por uma mentalidade que enfraquece a convivência plural e fomenta a marginalização de grupos sociais historicamente discriminados.

Neste contexto, a sociedade se vê desamparada, e os grupos marginalizados se tornam cada vez mais vulneráveis. A ausência de uma reflexão crítica e a aceitação do impensável, por mais disfarçado que seja, abre caminho para a propagação de ideologias tóxicas e divisivas. A banalização do absurdo não apenas ameaça nossa capacidade de pensar de forma coerente, mas também enfraquece os alicerces da convivência democrática.

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