Em um contexto onde a violência estrutural e o racismo institucional são realidades permanentes para a maioria da população negra e periférica, a atuação da polícia como figura de “proteção” é um paradoxo que evidência a profunda divisão social do Brasil. O que pode parecer uma ação de entretenimento para uns, é uma ameaça constante para outros.
Era uma noite comum e, ao descer do portão da minha casa no bairro periférico de São Paulo para pegar uma entrega de Ifood, me deparo com uma cena inusitada: uma viatura da Polícia Militar parada, com luzes piscando, cercada por uma pequena aglomeração de pessoas. Entre elas, homens, mulheres, crianças e três policiais fardados. Por um momento, me vi intrigado com aquela presença inesperada e me perguntei o que poderia justificar a situação. Um acidente? Uma blitz? Ou quem sabe um intruso no bairro?
Uma senhora, ao perceber minha curiosidade, interrompe minha reflexão e, de maneira tranquila, comenta: “Não é nada demais não. Meu neto está fazendo aniversário e, como ele gosta muito da polícia, a minha família fez uma surpresa e chamou os policiais.”
Minha resposta foi rápida e instintiva: “Que horror”, e, sem mais delongas, desejei boa noite e voltei para dentro de casa.
Não sei se minha reação inesperada assustou minha vizinha, mas aquela situação me abalou profundamente. Minha exclamação não era dirigida a ela, mas sim ao que aquilo representava. Para mim, a presença da polícia em um evento como aquele evocou imediatamente a realidade das crianças negras e periféricas neste país, que têm medo dessa mesma força que para muitos, especialmente os mais privilegiados, é vista como uma figura protetora.
Em um país minimamente justo, como seria possível uma viatura da PM, durante o expediente, ser utilizada como parte de uma comemoração de aniversário? Como isso poderia ser uma situação aceitável, em especial para uma criança de classe média branca, enquanto as mesmas crianças negras, na periferia, têm uma relação completamente diferente com essa mesma polícia? A presença de policiais em festas infantis, celebrada como uma surpresa, pode ser vista, para muitos, como uma forma de entretenimento, mas para quem vive na periferia, é, sem dúvida, uma lembrança amarga da violência cotidiana e do medo instalado pelas operações policiais.
E o mais chocante dessa contradição está no fato de que o policial, muitas vezes, vem da mesma classe à qual ele impõe o medo e a violência. O policial, em sua maioria negro, enfrenta condições de trabalho desumanas, arriscando sua vida em uma profissão mal remunerada e com uma estrutura de apoio precária, e, ao mesmo tempo, é colocado na posição de executor de um sistema que protege a elite e marginaliza a periferia.
O que acontece na prática é uma clara divisão de tratamento entre classes e raças, onde a polícia, como instituição, adota uma política deliberada de repressão nas comunidades periféricas e, ao mesmo tempo, é utilizada para reforçar a sensação de segurança nas camadas mais privilegiadas. Como bem colocou o Tenente Coronel Fernando Alencar Medeiros em 2017, a polícia trata as classes e as raças de maneira diferente, e isso não é apenas um reflexo do comportamento de seus membros individuais, mas sim uma estratégia institucional. No entanto, é um choque ver isso de forma tão explícita, ao vivo, diante dos nossos olhos.
A discrepância entre as diferentes realidades de quem convive com a polícia e de quem a celebra é um sintoma claro da desigualdade estrutural que marca o Brasil. Não se trata apenas de uma questão de segurança pública, mas de uma questão de justiça social e de uma verdadeira reformulação das instituições para que a violência não seja normalizada como parte da vida das periferias, enquanto a mesma violência é vista como uma garantia de proteção para outros.
Este episódio, aparentemente simples, serve como um microcosmo das tensões raciais e sociais que permeiam o país. E a pergunta que fica é: como podemos continuar permitindo que a polícia seja uma instituição que divide, oprime e marginaliza, ao invés de ser uma força de proteção para todos, sem distinção de classe ou cor? A verdadeira segurança não reside na presença de viaturas em festas de aniversário, mas no respeito à dignidade e aos direitos de todos os cidadãos, em todos os cantos deste país.