Sobre a homossexualidade e a construção do homem-Cis

Quero falar um pouco sobre o que é ser gay e um pouco sobre homofobia, pois, tenho lido pouco sobre esse assunto vindo de gays ultimamente e acho o debate válido. Gostaria com isso de problematizar especificamente a categoria “homem” e avaliar como pode ser homofóbico não fazer um recorte sobre os conflitos entre o ser-homossexual e a construção do homem-cis numa sociedade heteronormativa-machista-homofóbica.

Ser-homem hoje está intimamente relacionado com gostar de mulher e “pegar todas”. A construção de gênero masculina se sustenta sobre uma subjetividade direcionada ao consumo misógino de mulheres, que é o resultado social da junção entre heteronormatividade compulsória e machismo.

Não quero avaliar as origens de cada um e como se relacionam historicamente, mas apenas avaliar o aqui-e-agora. Fato é que existe uma relação íntima, em amálgama, entre gênero e sexualidade, de maneira que o que afeta um invariavelmente afeta outro como faces de coisas interseccionais.

Imagem ilustrativa referente a comunidade LGBT

Homens, ou seja, pessoas que por sua anatomia são socializadas para serem homens, são submetidos à consolidação da heterossexualidade como parte da socialização masculina em si.

Há não apenas uma expectativa em torno desta sexualidade, como um direcionamento ativo e uma afirmação positiva quando a heterossexualidade se concretiza. “Agora sim, que cresceu e passou a consumir mulheres, mostrou ser homem de verdade”.

Acredito com isso que boa parte da performance masculina gira em torno do projeto heterossexual machista, de maneira que todas as características do ser-homem envolvem um mesmo pressuposto com duas faces: o gostar de mulher e o ser homofóbico.

Ser homem e gostar de mulher segundo a sexualidade masculina heterossexual envolve ter aversão sexual a outros homens, de maneira que isso precisa ser tornado público para caracterizar a performance de gênero.

Ou seja, ser homofóbico é imanente à masculinidade corrente. E isso se dirige não apenas aos gays, mas aos outros héteros e ao sujeito sobre si, que constroem e exigem uma figura masculina que se distancia sexualmente de outros homens.

Por exemplo, no Brasil, isso se afirma pelos cumprimentos sem beijo no rosto, aperto de mão distante, um pudor com o toque e etc. Já na linguagem, isso se expressa pelo fato de “bicha” e “viado” (que deriva de “desviado”, não do veado, o animal), servirem de termômetro para o ser-homem, isto é, como parâmetro do que não ser.

Um homem que gosta de homem, portanto, entra em conflito subjetivo com a socialização masculina objetiva à qual está submetido. Se ser-heterossexual é intrínseco ao ser-homem-social, do ponto de vista da sociedade heteronormativa-machista-homofóbica, todo homossexual ou bissexual são, por excelência, menos homens segundo a sociedade heteronormativa-machista-homofóbica.

Fotografia com as cores do arco-íris. Foto banco de imagem

Entretanto, devemos lembrar que, na verdade, não existe nada para fora das normas que invariavelmente nos moldam e com as quais entramos em conflito. Como não existe homem não-social, ser menos-homem para a sociedade é, de fato, não ser homem no sentido pleno do termo, apenas em abstrato.

Aqui, talvez, eu esteja demarcando um limite para a noção de homem-cis que tem sido largamente utilizada para resumir homens-homossexuais. Por não serem socialmente homens de fato, não podem ser plenamente cis. Na verdade, ficam num limbo de determinação de gênero que, se ignorada totalmente, recai numa invisibilização da opressão própria da homofobia.

Em toda a minha vida eu sofri homofobia, desde que tenho consciência de estar vivo. Passei por 3 colégios em minha infância e adolescência, e não houve um em que eu não tenha sido alvo severo de bullying e segregação homofóbica, inclusive antes mesmo de eu ter consciência de minha própria sexualidade.

Eu era chamado de “bichinha”, considerado “o-que-deixou-de-ser-homem” e “o-que-não-pode-ser-considerado-como-tal” e nunca fiz parte de grupo masculino algum. Sofria inclusive violência por usar o banheiro masculino porque, enquanto “bicha”, eu não poderia compartilhar aquele espaço.

Obviamente que, por causa da transfobia, eu não seria aceito em banheiros femininos também; e nem o queria, pois, nunca tive identidade trans no sentido de ser mulher, mas eu simplesmente passei a evitar a ir ao banheiro masculino principalmente com outros homens dentro.

Aliás, a tensão sexual em banheiros masculinos é uma das opressões homofóbicas mais gritantes e uma das menos abordadas. Mas, enfim, excluído de toda convivência masculina, desenvolvi maiores amizades somente com mulheres. Sempre fiz parte de grupos femininos e compartilhei intimidade e identidade com mulheres, algo forte em mim até hoje, mas não despido de problemas.

Parada do Orgulho LGBT, nos Estados Unidos. Foto: Reuters

Com mulheres eu era o BGF, algo que só era aceito por não ser homem-de-verdade, de maneira que em muitos casos eu acho que era visto “quase” como uma delas, principalmente pelos outros homens. Atente-se ao “quase”, porque a transfobia também jamais admitiria que eu realmente fosse uma delas caso tivesse identidade trans.

Ou seja, havia opressão vindo das mulheres em grande parte, pois, mesmo as minhas amigas, que não usaram de violência “dolosa”, hipostasiar a noção de que eu não era homem de verdade, muito menos mulher, mas uma “bicha”, um tipo de aberração entre os dois, fora da normalidade binária de gênero por causa de minha sexualidade-e-trejeitos.

A opressão seguia os seguintes termos: enquanto aberração, tornou-se divertido me considerar infeccioso, de forma que os homens já fizeram competição e apostas para ver quem encostava em mim e saia correndo.

Acredito, inclusive, que esse caráter de aberração, do desvio, do meio termo que rompe o binarismo normal e acaba criando o fantasma da infecção, seja o que tornou tão fecundo o estigma do HIV sobre homossexuais, quando o vírus se tornou prevalente.

Era quase como se fosse a representação concreta do que os homossexuais já eram e ainda são: meio-doentes, certamente desviados e possivelmente contagiosos.

O que quero dizer expondo minha opressão pessoal é que a leitura da homossexualidade não é indiferente à leitura de homem-cis. Ser homossexual traz implicações concretas sobre ser homem-cis e perverte seus pressupostos, ou seja, a interseccionalidade pressupõe que esses termos são inseparáveis e que não são mais os mesmos quando colocados em conjunto.

Desenho de casal jovem. Fonte: Banco de imagens

Pelo o que conheço, e devem me corrigir se eu estiver enganado, no caso das mulheres-cis-negras isso é bastante claro no sentido de que o “ser mulher”, quando se é preta, é em si diferente do ser mulher quando se é branca, tanto que o feminismo teve de se adaptar e se transformar para abarcar as demandas do ser-mulher-preta, que era um tipo de não-todo da mulher-branca; e o mesmo vale para as mulheres-trans.

Infiro coisa semelhante no caso de homem-cis-homossexuais, só que num sentido mais radical. Ser homossexual (e aqui também entra o ser bissexual no sentido restrito de serem homens que desejam homens, seja exclusivamente ou não) é ser homem-cis de outra forma, social e objetivamente, numa outra condição de existência.

Uma amiga me disse uma vez que eu, enquanto homem, teria vantagens profissionais para adquirir algum cargo de liderança frente a ela. Senti que minha opressão foi invisibilizada com isso, pois, o que vivo desde que me dou por gente é que o ser-homem sempre me foi negado.

Aliás, larguei o curso de tecnico de informática porque ali me foi dito que eu não me destacaria porque era profissão de homem. Fui atrás da comunicação achando que, enquanto profissional liberal, eu estaria menos sujeito à opressão de mercado.

Entretanto, me deparei com um grupo secreto na Casa1 feito para apoiar os homossexuais contra boicotes profissionais, de forma que pudessem socializar e se amparar entre si, em segredo, para que ninguém descobrisse suas identidades.

E, posteriormente, quando já ativista, porque nunca tive “passabilidade heterossexual”, o Show na universidade fez questão de me representar como uma “bicha estereotipada” frente a 400 alunos que aplaudiam enquanto me ridicularizavam.

Talvez, pressupor que gays notórios usufruam dos mesmos privilégios que “os homens de verdade” se torne um tipo de homofobia porque pressupõe uma “democracia sexual”, como se a homofobia não afetasse a leitura do “ser-homem”, ou seja, como se a homofobia não existisse.

Ilustração da bandeira LGBT. Foto: Banco de imagem

Aliás, vou comentar sobre a noção de passabilidade. Tendo em vista que a homossexualidade entra em conflito intrínseco com a socialização masculina, sou adepto da hipótese de que toda passabilidade heterossexual de homens gays recorre a uma performance artificial, que fetichiza a masculinidade e a torna objeto de mimese.

O homossexual aceito é o homossexual que não parece um, ou seja, o que preserva toda a performance de homens cuja subjetividade se direciona ao consumo misógino de mulheres. Por isso, o homossexual aceito é aquele que, além da performance masculina, não expõe a própria sexualidade, ao ponto de permitir que todos esqueçam que ele é gay.

Daí advém a dificuldade, por exemplo, de expor beijo gay em novela e etc. O fato é que os homossexuais que adotam a performance heteronormativa o fazem para negar a própria homossexualidade, buscando se integrar a uma sociedade que não aceita desvios aparentes e apenas “tolera” as diferenças quando elas não afetam mais os sentidos.

Obviamente que a melhor arma da invisibilização é fazer as próprias vítimas introjetarem os pressupostos da opressão, fazendo-as achar que “não precisam deixar de ser homens para serem gays”, ou seja, que podem deixar de aparentar ser gays.

Enfim, acredito que, em função da intersecção íntima e inseparável entre sexualidade e gênero, a noção de homem-cis merece todas as ressalvas para não cair na opressão de invisibilizar a homofobia existente.

Entender a homossexualidade é entender o impacto dela sobre a construção de gênero e como isso se relaciona com o ser-homem.

E, cabe a ressalva, é evidente que o ser-gay não envolve necessariamente ir em direção à feminilidade, como alguns gays “discretos” devem protestar, mas algo precisa ser asseverado aqui: ser lido como gay é nunca ser aceito como plenamente homem do ponto de vista da sociedade heteronormativa-machista-homofóbica, não importa o quão masculino pareça, de forma que estabelecer uma performance masculina buscando atenuar a homofobia nunca será uma defesa real.

Ela somente assevera os pressupostos já existentes da construção masculina-heteronormativa-machista-homofóbica padrão e só lhe torna integrável por justamente militar a favor dela.

Entretanto, afirmo, nunca estaremos emancipados se nossa referência de positividade for os pressupostos da própria opressão.

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