Crítica ao argumento da direita

Não é de agora que o argumento predileto dos grupos reacionários é “vamos ser representativos e não vamos colocar partidos acima da opinião dos estudantes”. Bom, essa colocação é problemática em pelo menos dois aspectos. Pontuarei um por um.

O primeiro deles diz respeito ao tema da representatividade. Toda eleição, a partir de sua consumação, é representativa, ainda que desagrade posteriormente a opinião da maioria.

É representativa por, no mínimo, representar o desconhecimento do eleitorado que não conseguiu discernir as propostas da chapa durante suas eleições.

Não trato aqui apenas de cumprimento de tais propostas, pois, isso é um requisito ético básico digno de árdua cobrança, mas trato aqui das decisões da gestão no que tange a sua linha política.

É comum que a direita questione a representatividade de uma gestão socialista por suas medidas socialistas, como se tal conduta fosse intrínseca e obviamente indesejável. Para capitalistas, de fato é. Mas quem disse que por vivermos numa sociedade capitalista a maioria de seus cidadãos são deliberadamente capitalistas?

Um dos argumentos de Hannah Arendt sobre o sucesso dos movimentos totalitários do século XX diz respeito à disparidade existente entre a classe política e o povaréu.

Para a autora, a formação das massas insatisfeitas e avessas aos partidos no poder ilustrava com eloquência duas ilusões perdidas pelos Estados-nações europeus em seus sistemas partidários.

“A primeira foi a ilusão de que o povo, em sua maioria, participava ativamente do governo e todo indivíduo simpatizava com um partido ou outro. Esses movimentos, pelo contrário, demonstravam que as massas politicamente neutras e indiferentes podiam facilmente constituir a maioria num país de governo democrático e que, portanto, uma democracia podia funcionar de acordo com normas que, na verdade, eram aceitas por uma minoria. A segunda ilusão democrática destruída pelos movimentos totalitários foi a de que essas massas politicamente indiferentes não importavam, que eram realmente neutras e que nada mais constituíam senão um silencioso pano de fundo para a vida política da nação. Agora, demonstravam que o governo democrático repousava sobre a silenciosa tolerância e aprovação dos setores indiferentes e desarticulados do povo […].”(1).

Essa colocação em si comprova historicamente que a característica política mais comum de uma sociedade capitalista é o afastamento geral, o desinteresse predominante e, por conseguinte, a própria desinformação das nuanças dos processos políticos e de seus significados profundos.

Também sob citação da autora, “a sociedade competitiva de consumo criada pela burguesia [gera] apatia e até hostilidade em relação à vida pública, não apenas entre as camadas sociais exploradas e excluídas da participação ativa do governo do país, mas acima de tudo entre sua própria classe”(2).

E isso decorre devido à situação inerente dos sujeitos dentro dos meios de produção disponíveis, em que “o sucesso ou o fracasso do indivíduo em acirrada competição [torna-se] o supremo objetivo, de tal modo que o exercício dos deveres e das responsabilidades do cidadão [seja] tido como perda desnecessária de tempo e energia”(3).

Não há dúvidas de que na sociedade atual a maioria dos cidadãos estão sob alienação política e isso, apesar das supostas prerrogativas intelectuais de um ambiente acadêmico, não se dissolve na universidade. Logo, pressupor que o conjunto médio de estudantes entende as disputas políticas do ambiente em que vive é tão errado quanto pressupor que o brasileiro médio discerne bem o jogo de interesses dos partidos parlamentares.

O que temos atualmente, portanto, é a própria tragédia da representatividade, em que o voto e a necessidade de defender o seu sufrágio universal representam um apelo para a abissal disparidade entre grupos políticos que disputam órgãos representativos e a população votante.

Nesse sentido, tanto os partidos da ordem, quanto os partidos de esquerda, estão sujeitos ao mesmo paradoxo inerente. Em outras palavras, é no mínimo também descabido crer que a vitória de uma “chapa de direita” numa eleição decorre de uma crença real nas benesses da manutenção da ordem e do própria capital, visto que é alarmante o enorme desconhecimento teórico sobre o tema e seus diferentes significados para a vida.

O segundo aspecto criticável da frase diz respeito ao afastamento compulsório e quase moralista frente à organização partidária em geral.

Ainda que a via mais fácil de crítica seja a contradição desses grupos, os quais frequentemente são flagrados dialogando com partidos políticos da ordem, como PSDB, PMDB, DEM, PP, PR etc, o principal problema encontra-se num ponto ainda mais radical do discurso.

Um partido é um grupo organizado de participação voluntária em que as pessoas, sob um mesmo ideal político, orientam-se para a ocupação eletiva dos postos de poder. Visto isso, logicamente as ideias do indivíduo devem preceder a sua participação no e por meio do partido.

Um candidato político, seja para as eleições nacionais, seja para as eleições de um diretório estudantil, representa um conjunto de ideias a serem aprovadas ou não para um determinado mandato, independente de sua atuação paralela.

Assim, de certa maneira, quando os estudantes votam em candidatos organizados em partidos, acabam votando também no partido em questão.

O argumento falacioso dos grupos da direita estudantil pode tanto representar sua ignorância frente ao que significa uma eleição ou um órgão de participação política, quanto sua vontade deliberada de deturpar o sentido desses órgãos, tratando um comportamento conscientemente conservador como apenas “mera gestão do patrimônio e prestação de serviços admnistrativos à comunidade”.

Dessa forma, alegar que todo e qualquer viés transformador são, na verdade, tentativas de subverter a vontade da maioria, considerando implicitamente também que essa opinião seja realmente monolítica ou até mesmo consciente, é exatamente o que acaba impulsionando a criação de um novo partido; no caso, um partido conservador e antidemocrático, crente de que nenhuma outra ideia seja legítima no âmbito populacional para ocupar os órgãos de poder hoje e sempre. Em outras palavras, a política de antipartidarismo e apartidarismo é, em si, uma política unipartidária.

Para concluir, interponho que, diante do paradoxo político inerente da sociedade atual, o esforço pela conscientização coletiva das disputas políticas e dos diferentes modelos de sociedades embutidos nessas disputas torna-se tanto para a esquerda quanto para a direita um imperativo categórico, para utilizar termos kantianos.

E, nesse sentido, devo ceder que a esquerda tem sido muito mais transparente ao tratar sua proposta como divergência do que a direita, que tem pautando-se no pressuposto do consenso e da hegemonia. Sendo assim, o Dever está relacionado a um constante debate capaz de permitir que o corpo populacional, em campos ideais, possa fazer uma opção progressivamente consciente e discernente, e, se não o fizer, que ao menos esses grupos disputantes estejam moralmente satisfeitos por terem efetuado o possível para elucidar seus ideais.

Talvez, inclusive, nisso se legitime a existência desse texto grande numa página pessoal de facebook, que – eu sei! – é normalmente prerrogada como um lugar de discussões mais superficiais e descontraídas.

1, 2 e 3) Hannah Arendt, Origens do Totalitarismo; tradução Roberto Raposo. – Companhia das Letras, São Paulo 2012; página 439,440,441.

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