A Ética e o Ato puro na medicina

Em “Ética a Nicômaco”, Aristóteles, desde o enceto literário em como “a política é a ciência do bem para o homem”, professa o caráter teleológico da atividade ética, cuja finalidade seria a virtude do ser enquanto existente e o estabelecimento da prudência (phronesis) para a plena qualidade de σωφροσύνη (Sofrósine)(1).

Contudo, influenciado pelos pensamentos racionalistas do início da era moderna, entre eles Spinoza, Kant propõe que a atividade ética, a Moral, basta em si em função da Razão Pura Prática, podendo, em prol do dever, abstrair-se de todos os fins (2) .

O aparente paradoxo se revela como avanço a partir da assunção filosófica de que o ser humano tem a capacidade de emanar o senso de justiça a partir de si mesmo, intrinsecamente per se, não dependendo da sociedade para lhe proporcionar os subsídios morais necessários à percepção.

Essa perspectiva, entretanto, foi invertida nas análises críticas feuerbachianas, nas quais o material tornou-se o precedente da condição humana. A partir deste, todos os homens teriam suas concepções intelectuais influenciadas, sendo meros produtos da sociedade e da moral predominante e historicamente construída.

Os princípios éticos da medicina do trabalho
Médica cumprimentando o paciente. | Banco de imagens

A perspectiva final da era moderna da ética finalizou-se, assim, com Marx, que, a partir do materialismo dialético (a síntese hegeliana entre idealismo e materialismo), passa a entender a necessária coexistência simbiótica entre a atividade humana transformadora do meio e o meio como determinante da existência humana, de forma que o homem é o determinante indireto de si mesmo e que, portanto, sua ética está em sintonia com sua própria capacidade de deliberar e cuja variabilidade transcorre/advém da própria necessidade histórica.

A pretensa sociedade pós-moderna, entretanto, abnega a simples possibilidade ética a partir de duas pressuposições paradoxais:


1) A negação de qualquer ideologia frente à “realidade”, a qual deve ser priorizada a qualquer custo; e daí vem, por exemplo, a premissa básica da negação ao comunismo expressada em “O passado de uma Ilusão” de François Furet. Nesse caso, qualquer atividade ética rígida estaria em dissonância com a “realidade”, de forma que a lei deve ser cada vez mais frágil. É nesse contexto que vemos a Igreja Católica liberal representada no papa Francisco concedendo permissões aos fieis para suas práticas religiosas de forma que a lei moral esteja cada vez mais flexível e “atualizada”.

2) A negação do Real enquanto realidade objetiva. A Coisa Real é tida como a grande ilusão pós-moderna em que nada pode ser dito in veredicto e todas as proposições já se assumem como falsas antes mesmo de enunciadas. Nessa caso, o item 1 se universaliza e se torna o seu oposto: não se trata da realidade persistindo às ilusões, mas da Grande Ilusão persistindo à realidade. E nesse sentido, em resposta à Fraçois de Furet, Freud escreve “O futuro de uma ilusão”, não alegando que as pessoas precisam das ilusões para suportar a árdua realidade, mas que as ilusões correspondem a um impulso mais real do que a realidade em si; ou seja, que há uma realidade sendo sucumbida pelo ímpeto da ilusão transferido para a própria realidade.

O paralogismo pós-moderno, assim, se dá por meio da confusão entre Real e realidade. O Real é o conjunto simbólico intangível, artificial por definição, mas a realidade, mesmo sem seu núcleo Real, não deixa de existir – isso não seria nosso próprio suicídio filosófico? – mas apenas se torna uma entidade maleável (3).

Essa compreensão é essencial para situarmos a ética, assim como, apesar de problematicamente, fez Slavoj Zizek com o Ato Ético. Definitivamente não se trata de um ato que abnega a realidade e impõe um efeito abissal, mas, sim, de um ato que compreende a realidade e modifica as coordenadas sobre as quais ela se constitui. E nesse sentido, a origem desse ato retorna à Kant no que tange à sua finalidade no próprio dever a priori.

O recto agir tanto segue a formalidade universal moral como tem essa formalidade como fim em si, obtendo uma dupla-formalidade. E é dessa condição que pode surgir a possibilidade transgressora do ato ético.

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Arte. Banco de imagens

Não se trata de seguir à risca toda e qualquer ordem, nem de flexibilizar as leis para suportar sua existência frente aos nossos desejos “desviados” (como faz o papa Francisco), pois, nesses casos, a própria lei perde sua dignidade (trata-se de fazer a “coisa certa” pela razão errada).

O ato ético autêntico, ao contrário, é aquele que sublima o interesse e age pelo dever (formalidade da moral) em prol do próprio dever e, por meio dessa dupla-formalidade, pode entrar em contraste com a opinião pública geral (efeito transgressor).

Por exemplo, numa discussão em torno do aborto a real resolução para esse problema está na ética, ou seja, numa dupla formalidade.

A realidade objetiva atual notoriamente se estabelece como um mosaico de subjetividades, de opiniões, ao redor do tema, de forma que cada um, dependendo de suas condições históricas, culturais, religiosas, sociais e econômicas, possui uma opinião sobre o aborto (se correto ou não).

À despeito da legitimidade ou não de cada opinião, esse simples fato é o que deve servir como parâmetro para a ação ética. A opinião pública (realidade atual) em torno do aborto, contradizendo tudo isso, é de que devemos converter o Outro, de forma que, no fim, a vontade da maioria, por meio do álibi da democracia, submeta o grupo discordante à lei estatal (proibição ou legalização do aborto para todos).

Do ponto de vista ético, entretanto, a ação tem de conter o dever primordial a priori de Respeito às subjetividades como escopo único, principalmente porque o aborto é uma atitude praticamente intransitiva sobre o corpo da mulher e cujos motivos são quase totalmente provindos de elementos subjetivos.

Assim, a única possibilidade ética verdadeira atualmente é a omissão da própria opinião em debates públicos, de forma que cada um tenha a sua concepção de certo e errado em torno do tema preservada. A despeito da vontade ou da conveniência de tentar discorrer sobre a própria opinião ou de converter o Outro, porquanto o tema seja notoriamente irresoluto, o dever da preservação da subjetividade, nesse caso, acaba tendo de sobrevalecer.

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A omissão, doravante, deve assumir o papel de imperativo categórico universal, que, ao ser efetuado materialmente, acabará modificando as coordenadas da realidade em que se encontra: a opinião pública, a partir da nova percepção de liberdade conquistada por meio da omissão da opinião, passa a não achar mais positivo a conversão, mas sim a preservação da opinião do outro (e, portanto, a própria). Finalmente o “não se importar com a ação individual do outro” passa a ser uma realidade possível, que, no entanto, atualmente se encontra apenas num horizonte utópico.

Inegavelmente, frente à indiferença subjetiva à vida do outro no que tange à questão do aborto, a lei se estabelece como positiva para os necessitados. Assim, para as mulheres que clamam por ajuda, a permissão legal do aborto passa a ser apenas um epifenômeno imediato e inevitável.

Analisando a ética na perspectiva desse ato duplamente formal, como podemos analisar a ação médica frente aos temas elencados de aderência ao tratamento e de medicina centrada na pessoa? Aristóteles em Ética e Nicômaco, logo no segundo Parágrafo da primeira página, já escreve que “o fim da arte médica é a saúde” (4).

Ora, não vimos que a Moral prescinde de finalidade externa? Nesse sentido, o imperativo categórico da ação médica não pode ser a aderência, por mais aprazível que esse ideal transpareça-se. A medicina centrada na pessoa, o que inclui a explicação clara, lúcida e franca dos prognósticos e dos diagnósticos do paciente, são princípios éticos por simplesmente serem deveres a priori, ainda que possam levar a uma “perda da aderência”.

A informação é sempre uma atitude positiva, ela é o princípio da consciência e da decisão e a única que permite a legitimidade do livre arbítrio – e não é essa senão a justificativa lógica para o repúdio à censura?

Como alguém pode se julgar apto a discernir o que deve ser censurado se, ao acreditar que a censura obstrui a opinião das pessoas, ele estaria assumindo que sua própria decisão pode ser imprecisa e fruto de uma censura precedente?–. É por isso e somente por isso que um médico deve ser transparente em seu atendimento, não pela busca à aderência.

Isso, obviamente, não significa que a aderência não possa ser um objetivo, mas ela não pertence ao campo da ética, mas ao campo da atividade objetificada, isto é, da ação com um fim; uma estratégia, que, todavia, pode ser abjurada em função da ética em si.

A grande esperança, no entanto, acaba sendo o impacto material do Ato, o qual, muitas vezes, altera a própria realidade na qual se inclui e, assim, pode ter um efeito reverso positivo. Por exemplo (anedótico), se um líder de partido ameaça sair do grupo sob pretexto de que a opinião pública estará a seu favor (realidade), a ação ética, como disse Sloj Zizek (5), é de identificar o líder como tal e expulsá-lo de vez.

Com isso, a opinião pública se transformará (alteração da realidade possível) e deixará de perceber o partido como um grupo problemático que perdeu o líder carismático e passará a concebê-lo como um grupo consistente, cujos ideais são fortes o bastante para enfrentar o mais perigoso dos chantagistas. E é esse o impacto transformador da ética capaz de transgredir a realidade iminente.

No caso do paciente, defender a sua liberdade de escolha pode ser exatamente aquilo que o encoraja a aderir ao tratamento, ainda que essa defesa se dê com fim em si, não na aderência. Independente do resultado (possível não aderência), devemos estar confiantes de que esse ato provém de uma razão correta e que, ao ser efetuado, tem como resultado algo humanamente perfeito.

1) Ver “Os pensadores”, editora Abril Cultural, 1ª edição, 1973, sessão “Ética a Nicômaco”, página 245 a 443.

2) Ver “Religião nos limites da Simples Razão” de Immanuel Kant, página 10 da coleção “Textos Clássicos de Filosofia” de Direcção de José Rosa & Artur Morão e tradução de Artur Morão, Universidade da Beira Interior, Covilhã, 2008.

3) Ver Slavoj Zizek em “Alguém disse Totalitarismo?”, Editora Boitempo, 2013, página 117.

4) Ibidem1, página 245

5) Ibidem3, página 116

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