A validade das lutas e os questionamentos das estruturas de poder

Reflexões sobre o contexto das manifestações sociais e a legitimidade das ações em momentos de crise.

A luta social tem uma complexidade intrínseca, que se manifesta de maneira mais visível quando um determinado grupo social questiona as condições em que vive. Em momentos em que o sistema de valores dominante começa a ser contestado, surgem as manifestações, muitas vezes impulsionadas pela insustentabilidade das realidades que uma parte da população vivencia. No entanto, a pergunta sobre a validade de uma luta se torna difícil, justamente porque a percepção de que uma luta é válida depende do ponto de vista dos envolvidos, do contexto histórico e das estruturas de poder em disputa.

É importante reconhecer que toda luta, a partir da ótica do grupo que a defende, possui uma legitimidade inquestionável. Quando um segmento social chega ao ponto de achar sua condição intolerável, a urgência da ação torna-se autoevidente. As razões para lutar não podem ser ignoradas ou deslegitimadas, pois elas são construídas a partir das vivências e da percepção de sofrimento daquele grupo. A realidade dos marginalizados, dos oprimidos, pode ser muito diferente da realidade dos que ocupam posições privilegiadas, e isso deve ser considerado ao analisar qualquer movimento social.

A luta de classes, como entendida no campo da teoria social, vai além do simples confronto entre grupos econômicos ou políticos. Ela envolve também questões epistemológicas e subjetivas, que são, muitas vezes, ignoradas ou desconsideradas quando se tenta avaliar a legitimidade das ações de um grupo. É um erro acreditar que podemos rotular de maneira simplista as manifestações sociais, rotulando-as como válidas ou inválidas com base em um conjunto moralista e pré-estabelecido. Ao contrário, as manifestações e as ações de resistência surgem em um contexto específico, com suas próprias razões, que devem ser entendidas dentro da lógica de quem as realiza.

A moralização, que é muitas vezes utilizada pela estrutura dominante para controlar ou reprimir os movimentos sociais, é, em sua essência, uma violência disfarçada. A moral, nesse sentido, é um instrumento usado pelas classes dominantes para preservar seu status quo e garantir que os oprimidos permaneçam em sua condição. Essa instrumentalização da moral é uma das maiores armas da opressão, e é precisamente isso que Walter Benjamin abordou em suas reflexões sobre a violência política e a história. Ele nos ensinou que a moral é, muitas vezes, um artifício ideológico usado para justificar o poder e perpetuar a opressão.

Neste contexto, é possível perceber que as críticas a movimentos como a greve dos caminhoneiros, que se aproximam da realidade brasileira e que devem ocorrer em fevereiro, não são unidimensionais. Elas fazem parte de um conjunto mais amplo de disputas ideológicas, onde as classes dominantes buscam garantir sua continuidade no poder, enquanto as classes subalternas buscam maneiras de contestar essa hegemonia. O que está em jogo não é apenas a validade de uma ação, mas a luta pela legitimação de uma realidade alternativa, que reflete os interesses de quem mais sofre com as desigualdades do sistema.

Apesar das dificuldades, há uma tendência crescente de uma conscientização global sobre o “mal-estar geral da civilização”. Esse mal-estar, como tem sido descrito em várias partes do mundo, é um reflexo das crises econômicas, políticas e sociais que afligem grandes parcelas da população.

Não é uma preocupação exclusiva do Brasil, mas é um fenômeno que atravessa fronteiras, e que se manifesta em diversos movimentos de resistência ao redor do mundo. Essa insustentabilidade do modelo dominante está se tornando cada vez mais evidente, e as manifestações que surgem em resposta a isso, por mais caóticas ou desconcertantes que possam parecer para alguns, são uma expressão de uma busca por alternativas a uma ordem injusta.

Em tempos de crise e de polarização, as lutas sociais ganham contornos mais complexos. A dúvida sobre a validade dessas lutas pode ser uma reflexão válida, mas não pode obscurecer a necessidade de ouvir e entender as razões dos que se sentem oprimidos e sem alternativas.

Cada ação de resistência, por mais radical ou inesperada que pareça, é uma tentativa de romper com uma ordem que já não serve aos interesses da maioria. Assim, é através da compreensão e da reflexão sobre essas lutas que podemos começar a reimaginar um futuro mais justo e equitativo para todos.

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Ilustração da greve de 2018. Banco de imagem

A greve como forma de resistência e a crítica à burocracia

Cabe enfatizar, meus caros, que a greve não surge de maneira espontânea, mas como uma resposta de uma classe que identifica um problema na estrutura que a oprime. Quando os trabalhadores, ou qualquer grupo social, percebem que suas condições de vida ou trabalho estão insustentáveis, a greve se apresenta como uma das formas mais eficazes de reivindicação. No entanto, é preciso entender que, em muitos casos, certas demandas não podem ser articuladas dentro da ordem estabelecida, pois a própria estrutura que a sustenta é auto-defensiva. Ela está configurada de maneira que tende a expulsar ou deslegitimar qualquer ameaça que a confronte, sendo muitas vezes impermeável à mudança ou à crítica genuína.

Essa dinâmica explica, em parte, o distanciamento entre os sindicatos e as manifestações sociais mais espontâneas. Os sindicatos, embora em muitos momentos tenham sido a base da organização das greves, também se veem limitados pela própria burocracia que caracteriza suas estruturas. Isso ocorre porque, ao entrarem na órbita da organização formal e institucionalizada, os movimentos acabam sendo cooptados ou domesticados pela mesma lógica que eles procuram combater. A greve, portanto, perde parte de sua potência quando é articulada dentro da lógica burocrática, pois a própria ordem em que ela se insere é defensiva e tende a neutralizar os protestos.

Quando um questionamento é direcionado para um problema estrutural profundo, a maneira mais eficaz de enfrentá-lo não é pela obediência às regras da ordem existente, mas pela criação de um movimento que desafie essa ordem. A não-ordem, a desordem, é muitas vezes o único caminho possível para se atingir os objetivos reais de uma greve ou de qualquer manifestação que procure alterar a estrutura de poder. Nesse sentido, a greve se torna não apenas uma ferramenta de reivindicação, mas uma forma de resistência à lógica da normalidade que busca preservar o status quo.

Ao ver o crescente número de pessoas que criticam ou desvalorizam as greves vigentes, é importante lembrar que se uma greve não provoca um impacto significativo, se não causa algum tipo de prejuízo ou desconforto, isso pode ser um indicativo de que ela não está cumprindo seu papel de maneira eficaz. Se uma greve não incomoda, não interfere na rotina da sociedade de alguma forma, ela está distante de atingir seus objetivos. O verdadeiro impacto de uma greve está em sua capacidade de perturbar a ordem, de chamar a atenção para a necessidade de mudança e de forçar a reflexão sobre a estrutura que sustenta as desigualdades e as injustiças.

Por isso, aqueles que invalidam ou deslegitimam as greves não compreendem a profundidade do movimento de resistência que elas representam. A greve não é apenas um protesto contra as condições de trabalho ou de vida, mas um questionamento profundo e radical da ordem estabelecida. Quando os impactos da greve são ignorados ou minimizados, é porque talvez ela não tenha atingido seu verdadeiro potencial de transformação. Uma greve que não incomoda, que não causa um choque na rotina da sociedade, está longe de ser a ação eficaz que deveria ser. Portanto, ao defender as greves, devemos sempre lembrar de sua verdadeira finalidade: provocar a mudança, desafiar a estrutura de poder e exigir um sistema mais justo e equilibrado para todos.

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