Este texto é grande e contém spoilers
Quando a maior ameaça não é o inimigo, mas o medo
O filme Ao cair da noite (It Comes at Night), dirigido por Trey Edward Shults, é um thriller psicológico minimalista que explora o que poderia ser o maior terror de todos os tempos: o medo do desconhecido, da contaminação e da desconfiança. Em um cenário apocalíptico, a história se desenrola de maneira sutil e sem grandes sustos, mas com uma tensão palpável que permeia o filme do começo ao fim. É um terror mais psicológico do que visual, onde o maior inimigo não são as criaturas ou a pandemia externa, mas a paranoia que cresce entre os personagens.
A trama começa com uma premissa simples e eficaz. Uma família vive isolada em uma casa no meio de uma floresta, seguindo regras rigorosas de segurança para se proteger de uma pandemia devastadora que assola o mundo exterior. A quarentena parece estar funcionando até que uma outra família aparece, pedindo ajuda. Eles trazem consigo cabras e galinhas, o que lhes garante algum valor aos olhos da família principal, que luta pela sobrevivência. No entanto, essa aparente ajuda vem com uma desconfiança crescente que permeia todas as interações.
A regra central, repetida constantemente pelo patriarca da casa, é clara: “não confie em ninguém, ainda que pareçam gente de bem”. Essa desconfiança, plantada desde o início, cria a base para o terror do filme. O medo é alimentado pelas incertezas e pela falta de comunicação verdadeira entre as famílias. Mesmo quando se prova que os novos inquilinos não são imediatamente uma ameaça, a paranoia não diminui. A ideia de que qualquer um pode ser portador de algo mortal, seja uma doença ou uma ameaça psicológica, se torna a principal força motriz de tudo o que acontece.
A presença da pandemia, embora nunca mostrada diretamente, atua como um pano de fundo constante, o que permite que a tensão se concentre nas relações humanas. Os medos mais profundos dos personagens — a perda de controle, a falha na sobrevivência, o medo do contágio e da traição — se tornam mais palpáveis à medida que o filme avança. A desconfiança entre as famílias é quase palpável, e o desejo de proteger seus entes queridos acaba levando todos a atitudes que podem ser mais destrutivas do que qualquer ameaça externa.
O filme é um estudo sobre como o medo pode corroer a razão e transformar qualquer situação potencialmente segura em um campo minado de desconfiança e paranóia. Não há monstros, criaturas sobrenaturais ou zumbis. O terror vem da própria natureza humana, da dúvida constante sobre as intenções do outro e da inevitável suspeita de que, talvez, todos sejam inimigos em um mundo sem certezas. Essa abordagem minimalista do terror é eficaz na criação de uma atmosfera tensa, onde o que está em jogo não é apenas a sobrevivência física, mas a preservação da confiança e da humanidade.
Apesar do que poderia ser um filme sobre o apocalipse, Ao cair da noite transforma-se em um comentário sobre os próprios medos humanos e sobre o que estamos dispostos a fazer para garantir a nossa segurança, mesmo que isso signifique trair nossos próprios princípios. No final, o maior terror não vem do que há lá fora, mas daquilo que podemos nos tornar quando somos consumidos pelo medo e pela desconfiança.

Quando o medo da morte é mais forte que a vida em comunidade
A análise de Renato Hermsdorff sobre o filme Ao cair da noite ressalta uma das maiores forças da obra: a atmosfera imersiva de medo e desconfiança, que se estende além da tela, atingindo a própria audiência. O diretor Trey Edward Shults cria uma experiência de terror psicológico que se insinua não só nos personagens, mas também no espectador, transmitindo a tensão de uma forma que ressoa com a realidade. O perigo está sempre à espreita, nunca claramente definido, mas sempre presente, o que faz com que o público permaneça tenso, incapaz de desgrudar os olhos da tela.
O filme se passa em um mundo pós-apocalíptico, onde uma pandemia devastadora leva uma família a viver isolada em uma casa na floresta, protegida por regras rigorosas. Quando uma nova família aparece à porta, pedindo abrigo e água, a desconfiança é inevitável. A tensão entre a necessidade de proteger a si mesmo e a obrigação moral de ajudar o outro se intensifica, e a desconfiança vai minando qualquer possibilidade de um vínculo genuíno entre os dois grupos. O medo da contaminação, alimentado pela incerteza sobre a doença que assola o mundo, gera uma atmosfera opressiva, onde até os gestos de acolhimento se tornam carregados de suspeita.
O ponto de virada do filme ocorre quando o filho pequeno da família de inquilinos começa a apresentar sinais de contaminação. Neste momento, a sobrevivência e a ética se entrelaçam de maneira brutal. Para os anfitriões, a opção de salvar a própria vida parece ser clara: matar para garantir a sobrevivência. O terror do filme, no entanto, não reside apenas no ato físico de matar, mas na forma como a suspeita generalizada e o medo da doença transformam seres humanos em monstros aos olhos uns dos outros. Quando o assassinato se torna uma escolha “necessária”, a ética entra em colapso.
A verdadeira tragédia de Ao cair da noite é a perda de humanidade diante da necessidade de sobrevivência. O filme é, como aponta Hermsdorff, uma alegoria do colapso ético: quando a ameaça parece tão iminente e insuportável, a razão e a compaixão perdem força. A decisão de executar aqueles que, à primeira vista, poderiam ser salvos é tratada com uma frieza perturbadora, como se fosse o único caminho possível. Essa postura, muitas vezes interpretada como a escolha natural e até justificável, revela o horror da desumanização – a ideia de que a vida do outro vale menos quando a sua própria está em risco.
No entanto, a crítica vai além dessa tragédia pessoal e aborda um problema mais profundo: a guerra de todos contra todos, um cenário que, se levado adiante, resulta em um colapso social irreparável. A sobrevivência em situações extremas não deveria ser apenas um instinto, mas um esforço coletivo. A verdadeira sobrevivência, de acordo com o filme, depende da manutenção da solidariedade, do respeito mútuo e da capacidade de distinguir o certo do errado, mesmo em tempos de crise.
A cena final de Ao cair da noite é de fato aterradora. Não apenas pela violência explícita, mas pela reflexão angustiante que ela provoca: a capacidade humana de cometer atrocidades em nome da sobrevivência, e o quanto isso pode ser banalizado em uma sociedade que já perdeu a confiança nos outros. Hermsdorff, ao perceber que muitos no cinema reagiam de maneira impaciente ao desfecho, expõe a grande tragédia do filme: a ideia de que, quando o assassinato se torna a “opção natural” para garantir a sobrevivência, a linha entre o humano e o monstro se torna perigosamente tênue.
A reflexão final que o filme propõe é sombria, mas essencial. Quando o imperativo moral se dissolve diante do medo e da necessidade, o que resta é a desconfiança, a desumanização e a violência. O verdadeiro terror, portanto, não vem de uma pandemia ou de uma invasão externa, mas da ausência de compaixão e da falha em manter um vínculo de humanidade, mesmo nas situações mais extremas. A desconfiança, que parece justificada e até necessária para garantir a sobrevivência, na verdade pode ser a maior ameaça de todas.