Ygona, uma mulher trans, gorda e negra, não foi apenas uma vítima da Covid-19, mas também da cultura neoliberal que a culpabiliza pela sua própria morte.
Na noite de ontem, Ygona, uma influenciadora digital conhecida por sua postura irreverente nas redes sociais, faleceu devido a complicações causadas pela Covid-19. Recentemente, a mulher trans, gorda e negra havia se envolvido em uma polêmica após declarar que aglomerou em festas, um comportamento que, para muitos, foi interpretado como um desprezo pelas medidas de segurança recomendadas durante a pandemia. Suas postagens, com uma dose de deboche, geraram uma onda de críticas em suas redes, acusando-a de incentivar o comportamento negacionista. Mas, a morte de Ygona expõe questões muito mais profundas sobre desigualdade social, racismo e a responsabilidade individual em tempos de crise.
A narrativa construída ao redor de Ygona foi implacável. “Colhe-se o que planta”, disseram alguns. Outros, com empatia seletiva, afirmaram que não era possível sentir solidariedade por alguém que “aglomera para ir em festa”. Em meio a essas reações, a morte de Ygona passou a ser vista como uma consequência de seu comportamento, um castigo por desrespeitar as normas sociais. Mas essa visão simplista não leva em consideração as condições sociais em que ela vivia e a estrutura desigual que a colocou em risco desde o início.
Ygona, como muitas outras pessoas negras, trans e periféricas, estava em um grupo de risco elevado. Obesa, com comorbidades e vivendo em condições precárias, ela fazia parte das milhares de vítimas da pandemia que têm menos acesso a cuidados médicos adequados e são mais vulneráveis aos efeitos devastadores do vírus. No Brasil, a população negra tem uma taxa de mortalidade por Covid-19 50% mais alta que a população branca, enquanto as pessoas pobres têm o dobro de chances de morrer pela doença. Ygona não era apenas uma vítima da Covid-19, mas do sistema social que a marginalizou e a colocou à mercê de um vírus implacável.
A pandemia tem se mostrado uma crise social mais do que sanitária, onde a propagação do vírus está intrinsicamente ligada às desigualdades estruturais que marcam nossa sociedade. O vírus se espalha não apenas pela interação entre as pessoas, mas também pelas desigualdades sociais que determinam quem tem acesso à saúde, ao distanciamento social seguro e a uma vida digna. Ygona não morreu apenas por ter “aglomeração” como uma prática, mas por ser vítima de um sistema que a invisibilizou e a colocou em risco, fazendo-a viver uma vida onde a escolha de seguir medidas de segurança poderia significar o abandono de sua sobrevivência econômica e social.
Mas a culpa recai exclusivamente sobre ela. A forma como sua morte foi tratada pela opinião pública revela um aspecto cruel da sociedade neoliberal. No sistema meritocrático que nos cerca, a ideia de que “a culpa é sempre do indivíduo” permeia a maneira como tratamos questões sociais. O neoliberalismo, que prega a competição e a responsabilidade individual, atomiza as relações sociais, invisibilizando as estruturas que realmente determinam o destino das pessoas. No caso de Ygona, a condenação pública a isolou ainda mais, afastando qualquer reflexão crítica sobre o papel das políticas públicas, das condições de vida e da marginalização de pessoas como ela.
A responsabilidade pelo seu destino foi atribuída a uma decisão individual, como se a sua morte fosse uma punição por não se comportar de acordo com o que as normas sociais e políticas esperam. Mas e as celebridades e figuras influentes, muitas vezes ainda mais expostas e poderosas, que continuam a se aglomerar em festas e eventos sem as mesmas consequências? Por que a sociedade escolhe punir uma mulher trans, negra e pobre, enquanto ignora as responsabilidades de quem vive em outra realidade social e econômica?
A morte de Ygona, infelizmente, é um reflexo de como as pessoas marginalizadas, especialmente aquelas que pertencem a minorias étnicas e sociais, são tratadas com desdém. O governo de morte, que marginaliza esses grupos, e a cultura neoliberal que responsabiliza o indivíduo sem olhar para as causas estruturais, revelam uma realidade cruel. Sua morte não deve ser vista como um castigo por suas escolhas pessoais, mas como mais uma tragédia de um sistema que não dá a essas vidas a chance de uma verdadeira sobrevivência.
Essa tragédia também expõe uma falta de empatia dentro de comunidades que, teoricamente, deveriam entender a dor de viver em um sistema tão opressor. As pessoas LGBTQIA+, por exemplo, devem refletir sobre como, muitas vezes, contribuem para a manutenção do próprio neoliberalismo, responsabilizando as vítimas de maneira simplista e culpabilizando suas escolhas em vez de questionar as estruturas que as fazem vulneráveis.
O caso de Ygona é um lembrete de que a morte não deve ser vista como uma simples consequência do comportamento individual, mas como parte de uma rede complexa de fatores sociais, econômicos e políticos que precisam ser urgentemente repensados. A vida de Ygona não foi menos valiosa que a de qualquer outra pessoa, e sua morte, mais do que qualquer outra coisa, é um reflexo de uma sociedade que se recusa a ver a totalidade da realidade.