Parece revolução, mas é só neoliberalismo

Ygona, uma mulher trans, gorda e negra, morreu esta noite por complicações da Covid-19. Ficou conhecida recentemente por polêmicas nas redes sociais, sendo a última a que iniciou a cadeia de eventos que culminou na sua morte.

Partiu aglomerar? Dizia ela indo para festas às quais foi convidada no final do ano como atração. Aglomerei mesmo! Repetia com deboche em outro vídeo. Seus seguidores a criticaram, ponderaram a influência negacionista que ela poderia ter sobre outras pessoas LGBTQIA+. Não tardou para ser internada em UTI com insuficiência respiratória.

Não faltaram pedras sobre Ygona. “Colhe-se o que planta!”, disse um. “Tenho empatia por quem trabalha, não por quem aglomera para ir em festa”, disse outro. Morrer no caso de Ygona tornou-se questão de mérito. Mereceu morrer.

Ygona morreu porque era grupo de risco. Obesa, com comorbidades, pobre, foi mais uma das 220 mil vítimas de um vírus que é 50% vezes mais letal em pessoas negras, 2 vezes mais letal em pessoas pobres.

O vírus se espalha socialmente, pela cadeia de produção e pela circulação de pessoas e mercadorias; mata sobretudo socialmente, sendo implacável sobre quem já foi previamente adoecido pela vida; as estruturas negacionista que contribuem para sua propagação no Brasil são produzidas por uma complexa e rebuscada rede técno-política de um governo de morte que leva indivíduos mais vulneráveis e populações marginalizadas a se expor como projeto de extermínio; mas no caso de Ygona sua conduta individual basta. Pediu!

Milhares de celebridades muito mais influentes se aglomeraram e se aglomeram diariamente em festas e eventos sociais, exibindo seus corpos bronzeados sem máscara em praias e festas.

Com Covid-19, ficam em suas mansões ou hospitais de luxo. Mas nenhuma delas foi tão exposta ou escrutinada quanto Ygona. 220 mil vítimas, mas o “exemplo” a não ser seguido é o de Ygona. Por ser preta, gorda, pobre e trans ou por ter aglomerado? Ou por ter aglomerado sendo preta, gorda, pobre e trans?

A observância coletiva que coloca o indivíduo como o único e principal responsável por sua própria morte é parte de uma cultura neoliberal. Porque o neoliberalismo não é apenas um sistema político-econômico de mercado, mas uma forma normativa de entender o indivíduo em sociedade sob o eixo ideológico da meritocracia, atomizando as relações sociais pela ética da competição e consumo.

Parece revolucionário dizer que que Ygona sofreu as consequências do que plantou numa tentativa de chamar a atenção para a correta necessidade de isolamento social na pandemia. Mas a expoente e notável culpabilização individual no caso de Ygona, uma representante de populações marginalizadas que morrem mais na pandemia, denuncia que ela sempre esteve socialmente isolada.

Esse isolamento crônico é muito mais responsável por sua morte do que a falta de isolamento antes da festa de fim de ano para a qual foi paga para ir, pagando com a vida por ter ido.

Essas são as pessoas que no fim têm a morte comemorada por todos. Primeiro, pelo bolsonarismo que tem esses grupos como alvo de uma gestão com sanha de morte. Depois, pelas próprias pessoas LGBTQIA+ que se recusam a fazer análise social dessas mortes e a compreender que é o próprio neoliberalismo para o qual contribuem o fator mais deciso para desfechos trágicos como esse que testemunhamos.

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