A geração Tinder

Hoje, todo mundo está lidando com algo que, há pelo menos 20 anos, já é bem corriqueiro no meio gay: a superfluidade dos relacionamentos.

Quando Zygmunt Bauman escreveu seu “amor líquido”, ele não tinha outra coisa em mente senão a fugacidade dos relacionamentos num tempo em que a economia, as informações e as tendências seguem um fluxo necessariamente mais veloz de transformações; onde o próprio tempo ganha um traço mais corrosivo.

Nesse estado de coisas, é improvável que qualquer sujeito suporte um relacionamento estável, pois toda a realidade parece se movimentar em função de sua própria instabilidade.

Assim, se um dia o mundo ficou na retaguarda do amor dos jovens, onde uma certa promiscuidade “a la” anos 60 servia até de ato político de resistência contra o conservadorismo, hoje é como se a fixação gerada pelo amor fosse quem ameaçasse o movimento fisiológico e acelerado da realidade. Em outras palavras, os relacionamentos estáveis é que se tornaram algum tipo de resistência.

O fenômeno dos relacionamentos é o da troca fácil, sexual e insistente de pessoas; quando de repente nenhuma idealização sobre o outro sobrevive ao ato fugaz da consumação sexual. São tantas disponibilidades que, se um dia, era necessário se dedicar a alguém para algum tipo de sedução, hoje não há paciência para o mínimo de entrave ou diferença.

Afinal, em tempos nos quais expandimos nossos contatos para o que antes se equivalia a populações de cidades inteiras, ninguém mais é insubstituível ao ponto de justificar o esforço da conquista e da tolerância.

Na mesma tendência tecnológica em que deixamos a enxada e usamos apenas tratores-autômatos que fazem todo trabalho por nós, passamos da paquera para o match, ambos na velocidade de um touch. Ou seja, a conquista, onde o pressuposto é a incerteza, foi vencida pela entropia e, agora, só conversamos com quem já nos deu um like, quando a certeza já é pressuposta.

A grande questão é que toda relação é sempre dialógica e, por isso, o que vai sempre volta. Da mesma forma que percebemos os outros como objetos de um match, ou crush, ou seja lá o que for, também somos percebidos assim.

E a ameaça que circunda a todos democraticamente (e é aqui que se encontra o que, há um bom tempo, já permeava o meio gay e talvez, hoje, só tenha se intensificado) é a da descartabilidade.

Por causa da grande facilidade de estar com muitos e com a certeza pressuposta de que estes muitos estão disponíveis, o desenvolvimento espontâneo e profundo do afeto por alguém (o movimento de apego ao mundo exterior) tornou-se um movimento perigoso, onde a mão que deveria nos apoiar durante nossa entrega ameaça se dissipar no mesmo passo que o peso imposto sobre ela. E da mesma forma que hesitamos em fazer este movimento, pelo receio de cair no vazio, todos os outros igualmente hesitam.

Isto é o que define, portanto, um comportamento social e epidêmico, pelo qual um estimula no outro essa necessidade brutal e defensiva de desapego por causa do seu próprio movimento de desapegar.

As consequências são obvias. Em toda a tradição filosófica sobre o amor, desde Platão, passando por Kant, até os autores mais atuais, sempre houve um consenso implícito de que o amor pelo mundo e o amor-próprio estão em constante disputa.

Em palavras mais modernas, a auto-estima depende de se sentir amado, seja amado pelos outros, seja amado por si mesmo. Por isso, num mundo de necessário desapego, o narcisismo ganha a liderança das decisões individuais.

A auto-estima, presumindo que se apegar aos outros tenha se tornado um movimento muito perigoso, se retrai reativamente, impondo o desapego como resposta. E, na medida em que tal desapego mina a própria auto-estima, ela se contrai no próprio sujeito e passa a residir no campo da superfluidade.

Se, num momento, a auto-estima se saciava na profundidade das relações, como se bebêssemos água de um poço, hoje ela se compensa pela extensão, como se a bebêssemos de uma fina e extensa lâmina d’água correndo pelo chão.

Por isso, é pelo consumo quantitativo de pessoas, progressivamente superficiais segundo o próprio movimento social de desapego, que o sujeito encontra algum fôlego para seguir em frente com um tipo auto-centrado de amor-próprio.

O problema sempre foi este paradoxo insaciável entre a necessidade de se apegar e de se desapegar em nome da auto-estima, algo sempre criticado na comunidade gay, onde todo desapego gera mais desapego e termina num movimento inesgotável de superfluidade.

Cada pessoa tem medo de amar no mesmo passo que não suporta a falta de amor, compensando sua obsessão e sua carência por meio do consumo compulsivo e desumano de pessoas.

A questão obviamente não se esgota. Minha reflexão, igualmente limitada pela velocidade de leitura de textos nas redes sociais, não serve pra isso. Serve apenas para evidenciar um ponto que eu considero politicamente disputável. Não vale a pena resistir à nossa própria superfluidade e intolerância para com aqueles que nos encontramos afetivamente?

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