Será o fim do distanciamento social do jornalismo?

A importância do jornalismo tem aumentado com o Sars-CoV-2, será que ele vai fazer sua reinserção na sociedade?

No começo de março, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou que a Covid-19 é pandemia, é registrada a primeira morte no Brasil em consequência da doença e o país deu início ao planejamento para o distanciamento social. Nesse mesmo movimento e cadeia de eventos, duas áreas surradas nos últimos anos voltam a protagonizar o momento brasileiro. A ciência e o jornalismo ganham espaço e viram assuntos no começo do Coronavírus no Brasil. Até agora os canais de TV ampliam o espaço dos programas jornalísticos na grade de programação e os cientistas são fontes dos noticiários e de novos programas noticiosos e as pesquisas científicas norteiam as decisões de governantes. Nem a pandemia, nem a recuperação do espaço, do protagonismo e do papel do jornalismo e da ciência foram imaginados nas previsões de ano novo.

O ano de 2020 parece que pisou repentinamente no acelerador. O ano da queixa de 2019 se foi e parece que não se está falando do ano passado, mas de coisa de uma década atrás. Porque 2020 é daqueles filmes que mostram a nave vagando no espaço sideral e de repente, vrum, ela acelera a uma velocidade tão grande que faz um risco no céu azul-escuro e, puf! Some. De tão rápido que vai, e puf! Ela reaparece em outro lugar do mesmo céu azul-escuro, em outro tempo e quase para, navega vagarosamente a frente. É 2020. Mas não sabemos para onde ainda. O que sabemos é que, entre a aceleração e a retomada da navegação, algo aconteceu com o jornalismo, e também com a percepção sobre a ciência.

O que já sabemos é que esses dois atores, que são tão parte da sociedade que conhecemos como moderna, estavam sofrendo de desprestígio, ataques e questionamentos há três semana, cada um por seus motivos e com algumas justificativas e outros fundamentos injustificáveis. A ciência, e, nessa altura a pesquisa, as universidades, o financiamento público do ensino e mais uma série de fatores que entram nessa conta, foram alvo de preconceito, Fake News, desprestígio, queda de investimento, cortes ou contingenciamentos. Agora, médicos, sistema público de saúde, universidades, cientistas, pesquisadores e mais todos esses palavrões que gastam dinheiro público são chamados a salvar o mundo.

Na presença do novo coronavírus, sobre o qual se sabe muito pouco ou ainda não o suficiente, primeiro não existem remédios ou vacina. O número de casos graves tem aumentado e muito e paralelamente as mortes dispararam no Brasil e no Mundo. O fechamento de aeroportos e escolas e tem mudado todas as regras da organização política e econômica. Nessa mexida toda, o jornalismo volta à cena. Esculachado, desacreditado e não apenas criticado, o Jornalismo chegou a um ponto de desprestígio, não apenas diante de autoridades federais que hoje fazem pouco caso da profissão e dos profissionais, mas diante de uma sociedade que criticava a imprensa na mesma medida que espalhava fake news.

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Foto: Republicanos10

Na mesma medida em que a pandemia cresce em casos acelerados, foi chegando a todos os continentes e multiplicando as questões a respeito da doença e do vírus que a causa, o jornalismo passou a ser mobilizado, desejado e vendo seu espaço aumentar. Um primeiro sintoma do crescimento do espaço do jornalismo foi o aumento das horas de programação dedicadas às notícias.

Na segunda-feira (20) de abril o Encontro com Fátima Bernardes voltou ao ar com participação da Ana Maria Braga, que está em casa e vai relembrar receitas do Mais Você. Depois do programa ficar um mês fora do ar, por causa da ampliação do espaço da cobertura jornalística sobre a pandemia do coronavírus. 

O formato do programa é sem plateia e com conversas por vídeo com convidados. Os telejornais da emissora também ficaram maiores e as pautas são quase exclusivamente sobre a Covid-19. As novelas viraram ‘reprises’, assim como os jogos de futebol, enquanto a única parte da programação que é atual e factual é a de natureza jornalística.

A maior parte dos programas de auditório de entretenimento, que tratavam de outros temas do cotidiano e juntavam pessoas nos estúdios, foram substituídos por programação voltada a entrevista e conversa com especialistas em estúdio. 

O tom também mudou. O jornalismo apático e formal, cheio de fontes oficiais, deu lugar a um formato com críticas ao governo e a políticos sobre a condução em relação à pandemia, e o cenário está mudando, grandes divergências estão aparecendo no cenário político brasileiro. As instruções da OMS são a grande referência para balizar as avaliações e as críticas. O que foge a isso e contraria as instruções da experiência mundial e as recomendações dos cientistas é alvo de críticas em reportagens, notas dos apresentadores, comentários e entrevistas.

A diversidade de fontes e de linguagem tem aparecido também nas coberturas da Covid-19 em sites de notícia. A pauta do coronavírus está sendo vista pela sociedade e pelo jornalismo como uma doença que pode atingir a todos e esgotar recursos das redes pública e privada, cinco capitais brasileiras estão próximas a entrar em colapso Manaus, Macapá, São Paulo, Fortaleza e Palmas.

O reconhecimento que há uma preocupação genuína da sociedade em relação à solidariedade com o coletivo, mas que também é movida em grande parte por reconhecer que a doença pode atingir a todos e estrangular ambos os sistemas.

O jornalismo, por consequência, tem construído narrativas que tratam todos os brasileiros como iguais, no cenário atual não existe diferente, coisa que, muitas vezes não acontecia quando se tratava de outros temas. Moradores de bairros de classe média e moradores das favelas têm sido entrevistados nos telejornais, criando coberturas mais diversas e complexas, como deveriam ser em relação a outros temas, e corroborando com a visão de que todos são iguais diante do Estado, da sociedade e da lei.

A pandemia está ensinando nós jornalistas a aprender a fazer um formato mais diverso e igualitário quando o novo coronavírus passar e começarmos a lidar com outros temas. Mas o jornalista não é tão otimista. “Aprende não”. Um bom exemplo do tema da segurança pública, que sempre é visto de forma diferente de acordo com o lugar e o sujeito que a produz ou sofre violência. A imprensa brasileira teve preconceito com quem mora na  comunidade e periferia, como se quem morresse pela violência nesses lugares estivesse fadado a passar por isso.

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Periferia de São Paulo. Foto; Marcelo Augusto

A normalização da violência em certos contextos, com determinados sujeitos e lugares envolvidos levava a uma determinada leitura do acontecimento, uma visibilidade ruim do cenário. Com o coronavírus é diferente. A distinção parece finalmente ter chegado ao jornalismo, assim como as histórias das pessoas comuns. Essa diversidade responde à crise de representatividade sofrida pelo jornalismo nas últimas décadas, que imaginava um mercado e um público consumidor para o seu conteúdo. Hoje, há uma compreensão de que a sociedade é diversa e que é importante mostrar esse Brasil de mais vozes. Embora, o jornalismo ainda tenha dificuldade a dar espaço para quem não tem poder, para as pessoas comuns.

Tanto que o jornalismo de bairros, praticado no Capão Redondo, Jardim Ângela, em Heliópolis, também aumentou em importância e espaço na grade de programação e na vida das pessoas. Apresentou mais histórias de como as pessoas estão enfrentando a pandemia no cotidiano do distanciamento social e de voltas ao trabalho, mas em relação aos infectados, se mantêm mais nos números oficiais do que em narrações de hospital.

Especialmente na programação das emissoras de TV, é muito mais comum a produção de notícias que expliquem as determinações das administrações municipais, estadual e federal, os números oficiais, do que sobre a realidade dos hospitais da região das periferias dos estados brasileiros. Prefiro não julgar os colegas porque sei  que é bastante difícil fazer matérias onde a pandemia acontece, que leva repórteres a hospitais e cemitérios. As emissoras estão inclusive desaconselhando seus profissionais a fazer isso por questões de segurança e, porque os setores jurídicos têm feito contas a respeito do prejuízo com o adoecimento de um jornalista.

Muitos repórteres trabalhadores independentes sejam de sites ou jornais têm conseguido mais êxitos com essas histórias do que emissoras de televisão e o jornalismo local. No jornalismo local tem se sobressaído os bastidores da notícia e da apresentação. Vários jornalistas da periferia têm trabalhado de casa, em sistema de revezamento, e mostram seus locais de moradia, que leva a uma certa intimidade com o jornalista e à produção de conteúdo a respeito dos próprios repórteres, seus gostos em decoração e possibilidades financeiras.

Esse espaço ao bastidor vem com uma certa balança que o jornalismo tem tentando imprimir, variando entre pautas mais fortes e pesadas, que envolvem a realidade de adoecimento e perda com o coronavírus e as pautas positivas como a vida do repórter. O cotidiano das pessoas em Home Office, e a criatividade para superar a falta de movimento na economia e o isolamento de semanas, porém, é preciso mostrar a realidade do que todo o planeta está vivendo diante do Sars-CoV-2. Essa febre também se mede mais agora, não por pesquisas de opinião, mas pela reação dos usuários que hoje interagem muito mais com a empresas de comunicação, com os conteúdos e com os próprios repórteres do que antes.

A linguagem também sofreu transformações e possibilidades tecnológicas e impossibilidades de deslocamento com a pandemia, parte da produção jornalística depende de produções dos próprios expectadores, que são o auxílio dos jornalistas.

Médicos que filmam os hospitais em que trabalham e enviam para os veículos, como tem produzido o New York Times ao entrevistar e usar material de profissionais de saúde que atuam em grandes hospitais da cidade. Lembrando que esse material deve ser usado na falta de possibilidade de estar naquele local, mas que nada substitui a presença do repórter para realizar a mediação e a observações necessárias de alguém que é um profissional em contar a realidade e não é parte envolvida daquela ambiente.

É importante pensar que a cobertura da Covid-19 agora por meio dos Smartphone traz grandes desafios de leitura e linguagem, que o jornalismo enfrenta inúmeras alterações estéticas e de expressões. Sobretudo o jornalismo vem ganhando um papel essencial nas narrativas a respeito da pandemia.

Isso tem demonstrado uma expertise do campo, dos profissionais e também dos veículos, voltando a falar da TV Globo que vem mostrado aos expectadores e usuários que o jornalismo profissional é um ator importante em uma democracia e ,é o lugar aonde eles têm recorrido para se informar. Por mais que exista a fake news e a disputa de narrativas, o veículo mostrou-se eficaz e extremamente profissional na cobertura da pandemia. Demonstra também que era hora do jornalismo sair de uma normalidade que não era desejada e para a qual não se deve voltar.

Como a vida em sociedade, a organização econômica e social, o jornalismo também está sofrendo transformação com essa quarentena e com o enfrentamento da pandemia. Vamos acompanhar o quanto haverá de transformações efetivas no modelo, no papel e na importância social e para aonde vai transformação durante ao novo coronavírus e depois que ela passar. Voltar à normalidade pode ser uma opção, mas não me parece um caminho desejável para o jornalismo, pois, nada será como antes.

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